sexta-feira, 30 de abril de 2010

A PÁSCOA SAMARITANA NO MONTE GERIZIM

No dia 28 deste mês os samaritanos comemoraram sua Páscoa no Monte Gerizim. Você pode conferir algumas fotos do ritual visitando o blog do arqueólogo Aren Maeir.

Prepare o seu estômago, o ritual é bem sangrento.

A EXEGESE CRISTÃ NA PATRÍSTICA E NA IDADE MÉDIA

Muitos dos primeiros cristãos, fortemente influenciados pela cultura grega, continuaram a alegorizar o texto bíblico como faziam os rabinos. Dentre os que se destacaram no método alegórico estão Orígenes (185-254), Clemente (150-250), Dionísio Magno (†264) Atanásio (296-373), Dídimo, o cego (313-398), Gregório de Nissa (330-395), Basílio (330-379), Cirilo de   Alexandria (†444) e Gregório Magno (540-604)[1].

Um exemplo clássico de interpretação alegórica é o livro de Cantares. Inicialmente o livro era interpretado de forma literal ou histórica, descrevendo a relação entre Salomão e Sulamita como um amor recíproco entre uma jovem e um jovem. Mas a partir da segunda metade do século I a interpretação alegórica passou a dominar a exegese judaica. Na literatura rabínica o esposo foi identificado com Yahweh e a esposa com Israel. Mais tarde a tradição cristã os identificou como sendo Cristo e a Igreja[2], interpretação que vigora até hoje na maior parte das igrejas evangélicas.

O suicídio de Saul (que causava escândalo aos mais piedosos) logo passou a ser interpretado como prefigurando Jesus, que parte voluntariamente para a morte a fim de nos salvar[3]. Essa interpretação segue a orientação de Agostinho: “O que quer que apareça na Palavra divina que não diz respeito ao comportamento virtuoso ou à verdade da fé deve ser tomado como figurativo”[4]. Com esse recurso a dificuldade em explicar o suicídio de um rei de Israel foi facilmente solucionada. Na segunda formulação do capítulo 10 da Epístola de Barnabé, livro apócrifo do início do segundo século, a alegoria é empregada para explicar as estranhas proibições de Lv 11,6 e  Dt 14,7:

“Também ‘não comerás a lebre’. Por que razão? Isso quer dizer: não serás pederasta, nem imitarás aqueles que são assim. Porque a lebre, a cada ano, multiplica seu ânus. Ela tem tantos orifícios quanto o número de seus anos”.
 Como podemos ver, as explicações eram bem criativas. É até difícil imaginar de onde o autor desta epístola buscou inspiração para formular essa interpretação.

Uma das características do método alegórico cristão era ver referências a Cristo em qualquer que fosse o texto do Antigo Testamento.  Um exemplo é a interpretação dada por Clemente de Alexandria ao cordão vermelho colocado por Raabe numa janela (Js 2,18). Por mais estranho que nos possa parecer, ele viu nesse ato uma profecia da redenção pela morte de Cristo[5]. Para ele, assim como o cordão de Raabe proporcionou o livramento da família da prostituta, o sangue de Cristo nos libertou do pecado.

Na Idade Média o método alegórico também fez escola. Para os exegetas medievais o texto bíblico possuía, além do sentido literal, mais três sentidos[6]:

Alegórico ou dogmático - Pergunta pela verdade de fé sobre Cristo.

Moral ou ético - Instrução de comportamento do cristão.

Anagógico ou escatológico – Busca indícios trazidos pelo texto para a comunhão dos perfeitos nos Reino de Deus.

A crença na existência desses quatro sentidos pode ser resumida no adágio: “Littera egsta docet, quid credas allegoria; moralis quid agas; quid speres anagogia” (A letra ensina o que aconteceu; a alegoria, o que deve crer;  o sentido moral da Escritura, o que deves fazer; o sentido anagógico da escritura, que esperança deves ter).

O método alegórico dominou a exegese cristã por mais de um milênio até que foi suprimido por Lutero, que preferia uma interpretação mais literal e simples. Na opinião de Jacques Liébaert, o método alegórico transforma a Bíblia numa “floresta de símbolos”[7].

Referências bibliográficas:
FITZMYER, Joseph. A Bíblia na igreja. São Paulo: Loyola, 1997.
O’COLLINS, Gerald. Problemas e perspectivas de teologia fundamental. São Paulo: Loyola, 1993.
KERMODE, Frank; ALTER, Robert Edmond. Guia literário da Bíblia. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997.
BULTMANN, Rudolf. Crer e compreender: ensaios selecionados. Tradução de Walter Altmann e Hélio Schneider. São Leopoldo: Sinodal, 2001.
GILBERT, Paul P. Introdução à teologia medieval. São Paulo: Loyola, 1999.
LIÉBAERT, Jacques. Os padres da Igreja, séc. I-IV. São Paulo: Loyola, 2000.


Notas:
[1] FITZMYER, Joseph. A Bíblia na igreja. 1997, p.91.
[2] É preciso destacar que alguns exegetas dos primeiros séculos se recusavam a empregar o método alegórico indiscriminadamente. Teodoro de Mopsuéstia (†428), considerado o maior comentarista bíblico da Igreja antiga, se recusou a interpretar o livro de Cantares alegoricamente. Cf. MATOS, Alderi Souza de. Fundamentos da teologia histórica, 2008, p. 71.
[3] O’ COLLINS, Gerald. Problemas e perspectivas de teologia fundamental. 1993, p.49.
[4] KERMODE, Frank; ALTER, Robert Edmond. Guia literário da Bíblia. 1997, p.687.
[5] 1 Clemente 17,7 apud BULTMANN, Rudolf. Crer e compreender: ensaios selecionados. 2001 , p. 268.
[6] GILBERT, Paul P. Introdução à teologia medieval. 1999, p. 40.
[7] LIÉBAERT, Jacques. Os padres da Igreja, séc. I-IV. 2000, p. 101.
Imagem:
Saul Atacando Davi (detalhe)
1646
Óleo sobre tela, 147 x 220 cm

Galleria Nazionale d'Arte Antica, Roma

quinta-feira, 29 de abril de 2010

DESCOBERTA DA ARCA DE NOÉ: UMA FARSA?

Foi noticiado no dia 26 de abril pelo South China Morning Post e um dia depois pelo Fox News a descoberta da arca de Noé no Monte Ararat por um grupo de exploradores chineses e turcos. É bom lembrar que essa notícia já foi dada pelo menos duas vezes no passado. Lembro-me de ter adquirido em 94 um livro que fazia uma retrospectiva de supostos achados arqueológicos que provavam a existência da arca. O livro foi escrito por Charles Berlitz, famoso por tentar desvendar o mistério do Triângulo das Bermudas.

Mas não seria a “descoberta” o resultado de uma cuidadosa e orquestrada farsa?

Leia sobre o assunto aqui, aqui aqui e aqui.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

JESUS NA LITERATURA JUDAICA – LIVRO

LAPIDE, Pinchas. O filho de José? Jesus no judaísmo. São Paulo: Loyola, 1993.

Escrito pelo judeu Pinchas Lapide, O filho de José? Jesus no judaísmo faz uma minuciosa pesquisa sobre os pontos de vista a respeito da figura de Jesus dentro judaísmo. O autor é professor da Universidade Bar-Ilan e do American College de Jerusalém.

Na primeira parte da obra Lapide elabora uma pesquisa de 187 publicações (livros, poemas, peças teatrais, monografias, artigos) que versam sobre Jesus e foram lançadas nos 27 anos que se seguem à fundação do Estado de Israel. Num segundo momento ele examina dez recentes manuais de história utilizados nas escolas em Israel. Por fim, são apresentadas as visões a respeito de Jesus na literatura rabínica ao longo de quase vinte séculos.

É um livro que vale a pena ser lido. Principalmente pela quantidade de documentos citados e pela oportunidade de conhecer pontos de vista diferentes a respeito do homem  de Nazaré.

Para dar uma espiada no livro, clique aqui.

terça-feira, 27 de abril de 2010

A EXEGESE RABÍNICA

Entre os rabinos foram desenvolvidos métodos de interpretação que seriam considerados um tanto curiosos para nós hoje. O judeu Fílon de Alexandria (20 a.C. – 45 d.C.) aplicou ao Antigo Testamento um método conhecido como alegoria. O termo alegoria vem de allo (um outro) e agoreuen (dizer).  Na alegoria buscava-se um sentido oculto, ou seja, um outro sentido do texto, dito de forma velada.

A alegoria era um recurso utilizado pelos poetas gregos já no século VI a.C.[1] para interpretar seus mitos. Como as divindades gregas eram apresentadas de forma grosseira: ciumentas, vingativas, ambiciosas, etc, logo os poetas e filósofos começaram a interpretar suas narrativas religiosas de forma simbólica. Já não era mais possível acreditar em seres divinos cheios de defeitos semelhantes aos humanos, pois os filósofos gregos passaram avaliar o mundo sob a ótica da razão. Assim, a alegoria apresentou-se como um método adequado. Alguns passaram a sugerir que os relatos míticos eram uma versão deformada de grandes acontecimentos feitos por humanos (evemerismo). Em outros casos os deuses eram vistos como a personificação de qualidades morais (moralismo) ou ainda como metáforas de fenômenos naturais (fisicalismo).

O método alegórico utilizado por Fílon foi uma tentativa de tornar a Bíblia compatível com o pensamento grego. Dizia ele: “A interpretação literal (é) como o símbolo de um universo escondido, revelado pelo sentido alegórico”[2].  Fílon tentou mostrar que alguns elementos da filosofia da sua época já estavam presentes (de forma oculta) no texto bíblico. Ele vê, por exemplo, as quatro virtudes estóicas (prudência, fortaleza, temperança e justiça) nos quatro rios do Paraíso[3], em Gn 2,10-14. É difícil imaginar que relação poderia haver entre os quatro rios do Gênesis e as tais quatro virtudes estóicas, mas para Fílon isso era perfeitamente aceitável. Ele achava, como os gregos, que por trás do texto havia uma mensagem oculta cujo significado só poderia ser descoberto por poucos:
“O que é dito [na Bíblia] não se detém nos limites da explicação literal e evidente, mas parece dar a entender uma realidade que é muito mais difícil de conhecer pela multidão, realidade que reconhecem os que fazem passar o inteligível antes do sensível e são capazes de ver”[4].
Fílon vê nos utensílios do templo símbolos cósmicos: “a arca da aliança, o candelabro, as pedras preciosas do peitoral do sumo sacerdote são símbolos das partes do universo, dos planetas, dos signos do zodíaco, etc”[5]. Os dois querubins que ficavam sobre a arca da aliança também não escaparam o olhar atendo de Fílon: “Os dois querubins são os símbolos dos dois poderes de Deus, a soberania e a bondade, e que a espada era aquela do Logos”[6].

A literatura judaica dos primeiros séculos, seguindo o método de Fílon, nos apresenta interpretações bastante curiosas. Numa discussão a respeito do porque do livro do Gênesis começar com a letra hebraica beit (b) surgem explicações variadas:
“A letra beit é a segunda letra do alfabeto e também simboliza o número dois. O que nos ensina que para criar o texto bíblico foram necessárias pelo menos duas pessoas: Deus e o seu parceiro, o ser humano.”[7].
“O beit é a letra de bênção (berakhá) e o aleph a da maldição (arirá)[8].
Não havia entre os judeus uma preocupação em encontrar um sentido verdadeiro no texto. Todas as interpretações dadas pelos rabinos eram aceitas como verdadeiras pela comunidade. O texto não tinha um sentido objetivo, ele estava aberto à livre interpretação. Como explica Karen Armstrong, na exegese rabínica
 “As escrituras não são um livro fechado, e a revelação não é um fato histórico que ocorreu numa época distante. Elas se renovam sempre que um judeu se defronta com o texto, abra-se para ele e o aplica suas circunstâncias pessoais”[9].
É curioso ver como ainda hoje o método rabínico é empregado por pregadores cristãos populares. Como se vê, a alegoria rabínica fez escola.

Continua...

Referências bibliográficas:
ARMSTRONG, Karen. A grande transformação. O mundo na época de Buda, Sócrates, Confúcio e Jeremias. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Cia das Letras, 2008.
BÍBLIA DE JERUSALÉM: Nova edição revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2003.
FABRIS, Rinaldo (Org.). Problemas e perspectivas das ciências bíblicas. São Paulo: Loyola, 1993.
FABRIS, Rinaldo. As Cartas de Paulo III. São Paulo: Loyola, 1992.
HADOT, Pierre. O véu de Isis: Ensaio sobre a história da idéia de natureza. São Paulo: Loyola, 2006.
Phoînix/UFRJ. Laboratório de História Antiga. Rio de Janeiro: Mauad Editora, 2005.
V.V., A.A. LEXICON - Dicionário Teológico Enciclopédico. São Paulo: Loyola, 2003.

Notas:

[1] V.V., A.A. LEXICON - Dicionário Teológico Enciclopédico. 2003, p. 11.
[2] Sobre a vida contemplativa 3,28.
[3] FÍLON, Legun Allegoriae, 1, § 63-68 apud HADOT, Pierre. Ensaio sobre a história da natureza. 2006, p. 65.
[4] HADOT, Pierre. O véu de Isis: Ensaio sobre a história da idéia de natureza. 2006, p.69.
[5] Quaest. Et solut. In Exodum , I, 54 apud FABRIS, Rinaldo. Problemas e perspectivas das ciências bíblicas. 1993, p.43.
[6] de Cherub., 25 e 27 apud FABRIS, Rinaldo. Problemas e perspectivas das ciências bíblicas. 1993, p.43.
[7] Phoînix/ UFRJ. Laboratório de História Antiga. 2005, p. 70.
[8] Tradução livre do autor. No original: why with a bet? Because bet connotes blessing (berakhah). And why not with an aleph? Because aleph connotes cursing (arirah). POSNER, Raphael (Edit.). The creation according to the Midrash Rabbah. 2002, p. 47.
[9] ARMSTRONG, Karen. A grande transformação. O mundo na época de Buda, Sócrates, Confúcio e Jeremias. 2008, p. 403.

sábado, 24 de abril de 2010

MEUS SITES FAVORITOS

A gama de informações que a internet contém é algo inacreditável. Diariamente navego por sites que já fazem parte do meu dia-a-dia. Após uma boa e longa garimpada achei essas preciosidades:

Rádio Vaticano - Noticiário semanal das atividades do Papa e da Igreja em Roma e no mundo.

Symbol Dictionary.net - Fantástico dicionário de símbolos on-line (em inglês).

Web Gallery of Art - Museu virtual e banco de dados pesquisável de pintura e escultura européia dos períodos românico, gótico, renascentista, barroco, neoclassicismo, romantismo (1000-1850).

Biblical History Review (Revista bíblica de arqueologia). O site publica matérias ligadas à arqueologia bíblica.

Paleojudaica – Webblog sobre judaísmo antigo e o seu contexto

Ritmeyer Archaeological Design – Blog de Leen Ritmeyer, um design que elabora desenhos de construções antigas.

IHU – Instituto Humanitas Unisinos - Notícias, artigos e entrevistas veiculadas na mídia do Brasil e do mundo.

Bible Places Blog - Blog do professor Todd Bolen. Notícias e fotos de Israel.

Life in the Holy Land – Imagens das terras bíblicas.

Observatório bíblico – Estudos acadêmicos da Bíblia.


Christianity Today – Revista cristã americana

Christian Today – Revista cristã americana

El Pais – Jornal espanhol

Le Monde – Jornal francês

Haaretz – Jornal israelense

Jerusalem Post – Jornal israelense

quinta-feira, 22 de abril de 2010

O “HIJAB” DA DISCÓRDIA

Najwa Malha, uma jovem muçulmana de 16 anos foi impedida de entrar na escola onde estuda na Espanha, já que lá é proibido cobrir a cabeça com qualquer tipo de peça de vestuário.

Como tem ocorrido na França, a Espanha tem sido palco do debate a respeito do uso de símbolos religiosos em locais públicos. Se nesses países (e também no Brasil) a Constituição assegura a liberdade de culto, porque proibir o uso desses apetrechos?

Num editorial publicado no El País, há algo que foi dito que é digno de nota:

“devemos evitar a confusão entre o símbolo e outras peças de vestuário em particular, como a burka, que levanta outros problemas: a ocultação do rosto é expressamente proibida em alguns países, por razões de segurança”.

Caso a proibição seja estritamente necessária (como no caso da burka), não há o que discutir. Mas porque proibir o uso de crucifixos, quipás, véus, e tantos outros símbolos religiosos?

Por causa de grupos religiosos radicais tem surgido em certos países uma verdadeira fobia por tudo o que lembra religião.

Torço para que a jovem Najwa consiga expressar sua fé sem ser importunada.

Efatá!

O QUE SÃO LIVROS APÓCRIFOS?

A palavra apócrifo desperta nos cristãos os mais diversos sentimentos. Alguns, mais curiosos, se esforçam por achar na Internet um trechinho que seja de algum livro apócrifo para saber do que ele trata. Outros, advertidos por líderes temerosos por confundir suas ovelhas, evitam sua leitura como se fosse obra do próprio Satã. Mas o que é um livro apócrifo e porque o seu conteúdo é objeto de tanta polêmica?

A palavra grega apócrifo significa oculto, secreto, algo que está velado. Entre os eruditos essa palavra é usada para designar os livros que não gozam da mesma autoridade dos livros que constam atualmente na nossa Bíblia. Nós protestantes consideramos apócrifos sete livros e alguns acréscimos aos livros de Daniel e Ester presentes na Bíblia católica. Os sete livros são: Tobias, Sabedoria de Salomão, Eclesiástico, Judite, Baruque e I e II Macabeus. Os católicos preferem chamá-los de deuterocanônicos, ou seja, que foram canonizados numa segunda oportunidade (dêutero=segundo). Como estes livros foram escritos antes do advento de Cristo, estão incluídos entre os livros do Antigo Testamento. Tais livros jamais foram aceitos pelo judaísmo oficial (o cânon judaico foi fixado em 90 d.C., na cidade de Jâmnia) e foram motivo de divergência entre os próprios padres da igreja dos primeiros séculos. Lutero considerou estes livros úteis para leitura, mas não os pôs entre os canônicos. Em 1546, depois de acalorada discussão entre os bispos, o Concílio de Trento declarou que os escritos apócrifos eram tão inspirados quanto os demais livros presentes na atual Bíblia utilizada pelos evangélicos. Tal decisão tornou definitiva a diferença entre a Bíblia católica e protestante.

Mas porque Lutero considerou os livros apócrifos como "úteis para a leitura" se não os considerou inspirados? Bem, os protestantes não recusam os livros escolares apenas porque não os consideram inspirados por Deus. Ao negar a inspiração desses livros, Lutero queria dizer que não devem ser utilizados como fundamento para alguma doutrina. Como o Concílio de Trento pôs os apócrifos (ou deuterocanônicos, para os católicos) em pé de igualdade com os demais livros, os católicos não hesitam em citar textos de II Macabeus para apoiar a doutrina da oração pelos mortos, do purgatório e da intercessão dos Santos (cf. 12,28-45; 15,11ss.).

Lendo os apócrifos é possível conhecer melhor a cultura judaica dos primeiros séculos que antecederam o nascimento de Cristo.  Judite e Macabeus evidenciam o sentimento nacionalista judaico do II século a.C. Os acréscimos ao livro de Daniel (Bel e o dragão) põem em relevo a extrema repulsa dos judeus à idolatria. O livro de I Macabeus permite uma melhor compreensão do contexto histórico do chamado período inter-bíblico. Este último livro revela, por exemplo, que o helenismo (cultura grega difundida por Alexandre, o Grande) influenciou de tal modo o povo judeu que vivia na Palestina que parte do povo passou a se envergonhar da sua circuncisão: "E alguns dentre o povo apressaram-se em ir ter com o rei, o qual lhes deu autorização para observarem os costumes pagãos [e eles] restabeleceram seus prepúcios e renegaram a aliança sagrada" (I Mc 1,12-15). Como o judaísmo deste período estava fortemente helenizado, essa influência acabou inserindo novas doutrinas no judaísmo da época.

Além dos apócrifos do Antigo Testamento, existem também os apócrifos do Novo Testamento. Estes são considerados espúrios tanto por católicos como por protestantes. Tais escritos podem ser divididos entre apocalipses (p. ex. apocalipse de Pedro e de Tomé) relatos da vida de Jesus (p. ex. Evangelho pseudo-Tomé e pseudo-Mateus) e epístolas (p. ex. Carta de Tibério a Pilatus e Livro de São João Evangelista). Estes livros foram escritos numa data bem posterior aos escritos neotestamentários tradicionais.  A maioria deles é uma tentativa de descrever episódios não revelados nos livros bíblicos tradicionais, tais como a infância de Jesus, sua descida ao Hades, milagres fantásticos efetuados pelos apóstolos e supostas revelações misteriosas dadas por Jesus a alguns de seus discípulos. O Evangelho Árabe da Infância, por exemplo, narra o menino Jesus fazendo passarinhos de barro capazes de voar: "Ele havia feito figuras de pássaros que voavam quando ele ordenava [...] e que paravam quando ele dizia para parar" (Evangelho Árabe da Infância, cap. 35). Vemos nesses livros o quão criativo era o povo, que na falta de relatos a respeito de eventos não detalhados nos escritos canônicos, não hesitava em criá-los sem a menor objeção.

Referências bibliográficas:
ÁRIAS, Juan. A Bíblia e seus segredos. Tradução de Olga Savary. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.
BRAKEMEIER, Gottfried. A autoridade da Bíblia: controvérsias – significado – fundamento. São Leopoldo, RS: Sinodal, Centro de Estudos Bíblicos, 2003.
LIMA, Alessandro Ricardo. O cânon bíblico: A origem da lista dos livros sagrados. Brasília, DF, 2007.
ZILLES, Urbano. Evangelhos apócrifos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.
LIMA, Alessandro Ricardo. O cânon bíblico: a origem da lista dos livros sagrados. Brasília, DF, 2007.

Imagem:
CESARI, Giuseppe
Judite com a cabeça de Holofernes
1605-10
Óleo sobre tela, 61,3 x 48 cm
Museu de Arte de Berkeley, Universidade da Califórnia

terça-feira, 20 de abril de 2010

ENTREVISTA COM ISRAEL FINKELSTEIN

O arqueólogo israelense Israel Finkelstein, professor de Arqueologia de Israel na Idade do Bronze e Idade do Ferro na Universidade de Tel Aviv, concedeu uma entrevista à Biblical Archaeology Review (mai/jun 2010). O título original da matéria é: The Devil Is Not So Black as He Is Painted. A reprodução da entrevista é parcial. A tradução foi feita pelo Numinosum.

Na entrevista, o editor Hershel Shanks, lhe pergunta sobre a historicidade do Êxodo (citando a Estela de Merneptah como evidência arqueológica da presença israelita na Palestina):
“A Estela Merneptah é realmente uma prova de que houve um grupo de pessoas chamado Israel no final do século 13 a.C. Não há como discutir sobre isso. [...] mas o que dizer sobre o Êxodo? Ou a ascensão de Israel em Canaã? Ou o tamanho e a localização desse grupo de pessoas?”.
Sobre o processo de formação do Antigo Testamento, Finkelstein explica que:
“...este é um processo longo. A arqueologia é estratificada e a história também é estratificada [...] No fundo, houve um movimento de pessoas dentro e fora do Egito no final da Idade do Bronze e da Idade do Ferro, e uma memória foi desenvolvida sobre um possível evento antigo, e depois essa memória ganhou importância e foi transmitida oralmente por várias gerações até que finalmente se tornou a história do Êxodo por escrito. Não estou dizendo que não há qualquer germe histórico nela. Você nunca vai me ver dizer isso. Mas eu não vejo isso como totalmente histórico também”.
Ele continua:
“Não há nenhuma evidência de um movimento de grandes grupos de pessoas. Não há possibilidade, no fundo da dominação egípcia de Canaã no século 13 a.C., de pessoas marchando para a terra, e assim por diante. A maioria dos israelitas vieram dos cananeus locais do segundo milênio a.C. Por um lado a história do Êxodo na Bíblia retrata realidades eternas, e por outro as realidades específicas da Idade do Ferro. É possível que haja algum tipo de memória por trás da história. Pronto, esta é a minha resposta”.
A falta de evidências arqueológicas que comprovem a permanência de um grande grupo de pessoas em Cades-Barnéia, por exemplo, é destacada pelo arqueólogo:
“Por exemplo, Etzion Geber, Cades-Barnéia, lugares que são mencionadas especificamente, que são fundamentais para a história da peregrinação no deserto e que não foram habitadas no Bronze Tardio”. 
Já no final da entrevista, Hershel Shanks lhe pergunta sobre as escavações de Eilat Mazar, que parecem ter desenterrado o palácio do rei Davi, construído no século X a.C.:
"Eu acho que suas escavações são importantes. Eles nos fornecem informações importantes sobre Jerusalém na Idade do Ferro. Mas não vejo qualquer ligação entre as escavações e o palácio do rei Davi. Eilat Mazar lê o texto bíblico literalmente. A Bíblia diz que Davi "desceu", e David "subiu", e David foi "para a esquerda", e David foi "para direita" e assim por diante. Eu não acho que se deva fazer isso. Há muitas camadas no texto bíblico. Não é um guia para a topografia de Jerusalém. Em minha opinião, ter a Bíblia como um guia para a topografia de Jerusalém no século X a.C. diminui o texto da Bíblia. Este é o tipo de arqueologia bíblica que não pode mais ser feito".