sábado, 28 de julho de 2012

CALVINO E O GALARDÃO: UMA RECOMPENSA QUE NÃO É RECOMPENSA


Uma curiosidade que me atormentou há alguns anos: como Calvino compreendeu o galardão, uma vez que alguns textos bíblicos (p. ex. 1Co 3,8 e Ap 22,12) e o próprio sentido da palavra grega misthós parecem dizer que se trata de um prêmio, uma recompensa ou até mesmo salário (como em Mt 20,8 e Rm 4,4) pelas obras de cada indivíduo? Haveria aí um conflito entre a doutrina da graça e a promessa numa recompensa supraterrena baseada em méritos pessoais? O reformados francês trata do assunto no Livro II, V, 2 das suas Institutas.

Citando Agostinho diversas vezes, Calvino explica que “os pecados são do homem, os méritos, de Deus” e que “o mérito procede da graça, e não a graça do mérito”. Ele finaliza dizendo que “Deus precede a todos os méritos com seus dons, para que daí sobreleve seus méritos, e os dá inteiramente de graça, porquanto nada acha no homem para que o salve”.  

Traduzindo para um leitor não iniciado na complexa arte de teologar: Sou um pecador atolado na lama. A graça de Deus, como um raio, corta os céus e me atinge, libertando-me do atoleiro (muitos outros continuam lá, abandonados à sua própria sorte). Seres celestiais vestem-me com roupas limpas, reparam minha vontade perversa e me concedem muitos dons, que produzirão méritos. Mas estes méritos, que fique claro, não são meus, uma vez que nada partiu de mim, mas do Deus que me libertou do atoleiro. 

Há quem diga que os “mistérios da graça” não podem ser entendidos. Então para quê tentar explicar? Fica a pergunta: se os méritos não são produto do esforço individual da criatura humana, por que cargas d’àgua os textos dizem: “o galardão que tenho para distribuir a cada um segundo o seu trabalho/obras” e não “...segundo as obras de Deus por intermédio do homem”?

Seria uma "pegadinha" dos hagiógrafos?

Lutero ao menos foi honesto atribuindo menor valor canônico aos textos que não lhe agradaram. Tiago, pobre Tiago, virou “epístola de palha”. Triste destino...


Jones F. Mendonça

14 comentários:

  1. Se Calvino abusou das citações de Agostinho, aqui vai mais uma: “Concede-me o que ordenas.Ordena-me o que quiseres”

    Se o que leva o indivíduo a receber tal galardão é também tratado como fruto do Espírito, logo não é mérito do homem, mas da obra do Espírito nele.

    Não é verdade, mestre?
    André R. Fonseca

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  2. Não acredito em salvação. Mas se acreditasse, seria apenas em salvação pelas obras.

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  3. André,

    Mas os textos dizem: "segundo as suas obras". Ah, é uma "pegadinha".

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  4. Will,

    Gosto de ver o homem responsável por seus atos, tanto os "bons", como os "maus". Não sou tão confiante no homem e em sua razão como alguns iluministas. Nem tão pessimista quanto um calvinista. Depravação total... nunca!

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  5. Mas então, Jones
    Segundo suas obras por definição de critério e não por mérito. Qual seria a linguagem possível para designar a diferença daqueles que carregam o caráter de salvo e daqueles que se perdem? Será que a Bíblia não se utiliza de uma linguagem natural para se referir às coisas e noutras vezes ela é metafísica? Jó fala de Deus como aquele que age e passa do seu lado e ele não o vê. Não é uma maneira simples de falar do transcendente?

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  6. Fico pensando nos destinatários de Paulo e João. Os do último, por exemplo, estavam sendo perseguidos. Então eles ouvem: "permaneçam fiéis, porque o galardão será distribuído segundo suas obras". Será que esses cristãos sabiam distinguir entre uma "definição de critério e de mérito"? Eu duvido.

    Na se trata, neste caso, de usar uma linguagem humana para falar das coisas celestes. Os textos poderiam ser mais claros: "permaneçam fiéis, Deus saberá recompensar cada um de acordo com a sua graça". Mas não é isso o que os autores parecem dizer.

    Na pática o que acontece é o seguinte: adaptamos os textos que parecem ir contra nossas crenças e convicções. São muitas as teologias presentes na Bíblia. O que fazemos é selecionar. Os cristãos fazem isso desde os primórdios.

    Bem, essa é minha opinião.

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    1. Concordo que os cristãos estavam em perseguição e que eles poderiam não ter este discernimento. Mas a interpretação do que o hagiógrafo quis dizer vem somente do que ele produziu como obra e Paulo mesmo faz essa distinção e afirma que toda boa obra procede da ação de Deus em nós e nada parte de nós mesmos. João não aponta para nada diferente disso! Interpretar a intenção do hagiógrafo a partir do suposto discernimento do destinatário não seria um erro grosseiro?

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    2. E não seria um erro grosseiro fazer o texto dizer o que ele não diz? No texto está escrito: ”de acordo com a sua obra”. Você, e não eu, baseando-se num suposto entendimento dos destinatários, argumentou que o texto seria compreendido como “de acordo com a graça de Deus”. Lembre-se que não foi minha a suposição de que os destinatários sabiam fazer distinção entre uma “definição de critério e uma definição de mérito”. Eu apenas me orientei pelo texto, como reza o método histórico-gramatical.

      O que percebo, André, é que alguns textos parecem dizer que o indivíduo faz escolhas, noutros, ao contrário, ele parece não ter essa faculdade. É assim tanto no Antigo Testamento como no Novo Testamento. No final das contas, insisto, fazemos escolhas.

      Justo Gonzales, teólogo cubano radicado nos Estados Unidos, percebendo que não há uma solução para o problema respondeu: “Se Deus é onipotente, Ele saberá como conciliar a liberdade humana com soberania divina”. Como o Leão da Montanha, simpático personagem da Hanna Barbera, ele recorreu a uma “saída pela direita”.

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    3. Não disse que os destinatários sabiam, mas que o que eles podiam entender ou não não é critério para interpretação do que Paulo disse no todo de sua obra. Paulo precisa ser entendido à luz de Paulo. Não?

      Ou quer dizer que os seus textos aqui no numinosum não serão compreendidos a partir do que você diz como obra refletindo o seu pensamento como um todo? O que você pensa sobre um assunto não é o que você escreveu? O método histórico-crítico recomenda isolar uma frase sua e entendê-la a partir dos comentários de seus leitores e não no conjunto de sua obra? É isso?

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    4. Se não ficou claro, o que quis dizer foi que o método-histórico crítico preocupa-se com a intenção do Autor, mas VOCÊ questionou se os destinatários poderiam entender daquela forma. Não toquei no assunto de destinatários, quem fez o salto foi você! Desde o início estou considerando o método histórico-gramatical como quem busca a intenção do AUTOR e não a "intenção" do leitor. Isso, nunca vi em método hermenêutico algum.

      Aceitemos como o fato o meu erro e o seu acerto nesta questão. Será que as pessoas avaliarão o seu acerto partindo da minha inabilidade de entender o seu acerto? Parece loucura!

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    5. Não estou defendendo doutrina A ou B. Não estou dizendo que os textos que citei derrubam o monergismo. Eles apenas tornam a coisa mais confusa. Se Paulo tem uma maneira estranha de se comunicar, dizendo que haverá uma recompensa que não é recompensa e que as obras são dos homens, mas que age é Deus, para mim pouco importa. Aliás, se Paulo defende o que Calvino propôs, eu o rejeito, assim como Lutero rejeitou Tiago.

      Há algo que estou enfatizando desde o início. Calvino explicará textos que parecem derrubar sua doutrina a partir de outros que ele selecionou. Os arminianos farão o contrário! Quando Deus parece se arrepender Calvino diz: “antropomorfismo pedagógico”. Quando Deus é apresentado como imutável, outros dizem: “Ah, mas é imutável apenas em seu caráter!”. Os próprios autores bíblicos tinham concepções diferentes a respeito de Deus.

      Não propus uma exegese baseada no destinatário (ainda que isso deva ser levado em conta), tampouco num texto isolado (mas isso não elimina a necessidade de uma explicação). Apenas fiz perguntas que merecem uma resposta de quem acredita saber (como diz o Osvaldo) o "modus operandi" de Deus.

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  7. Acredito que o homem esteja aqui na Terra para desenvolver-se intelectualmente e principalmente moralmente. Penso que as Escrituras nos estimulam a melhorar o nosso Ser, para que assim nos aproximemos do carácter Divino e possamos ser verdadeiramente a Imagem e Semelhança do Criador, nos libertando, e porque não, nos SALVANDO de nosso EGOísmo, orgulho e vaidade.

    Um Abraço

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  8. É muito, muito engraçado: tratados e tratados e tratados sobre "salvação", e reflexões e reflexões e reflexões sobre o modus operandi...

    Aí, alguém se aproxima, ouve tudo e, baixinho, se pergunta - mas salvação de quê?

    A doutrina da graça, seja graça graciosa, seja graça meritosa, é secundária, é de segundo plano - primária e em primeiro plano está a doutrina sacerdotal/judaica/templária do sacrifício, logo, da perdição. É preciso entrar de cabeça na retórica do templo para que ela faça sentido. Basta uma compreensão profética ou sapiencial da vida para que o Templo perca seu poder e o poder de sua retórica.

    Calvino, Agostinho, Paulo: são, todos, antes, adeptos da teologia do templo. Depois, cristãos.

    Há muito tempo eu disse não ao Templo. Não faz mais sentido algum para mim essa discussão sacerdotal.

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