quarta-feira, 26 de março de 2014

O MONÓLITO DE KURKH E O REI ACABE DE ISRAEL

Monolito de Kurkh, Museu Britânico
Descoberto em 1861 em Kurkh, Turquia, o monólito foi esculpido por volta de 853 a.C. pelos assírios com o propósito de registrar a vitória de Salmaneser III (858-824) sobre uma liga de 12 reis na região de Qarqar. De acordo com a inscrição os principais líderes dessa liga foram Irhuleni, de Hamate; Hadadezer, de Harã e Acabe, de Israel (citado em 1Rs 16-22). Ao lado da Estela moabita (ou estela de Mesha, 850 a.C.) a descoberta seria uma importante evidência da influência do reino de Israel (do Norte, sob a dinastia dos omridas) na região. 

Na monólito de Kurkh o nome de Acabe aparece grafado como “A-ha-ab-bu KURSir-‘i-la-a-a”, e tem sido geralmente traduzido como “Acabe de Israel”. Mas a identificação de A-ha-ab-bu com Acabe esbarra em alguns problemas. Um deles é que a Bíblia hebraica fala de uma guerra entre Acab e o rei Ben-Hadade (1Rs 20 e 22).
Ora, Ben-Hadade, rei da Síria, ajuntou todo o seu exército; e havia com ele trinta e dois reis, e cavalos e carros. Então subiu, cercou a Samaria, e pelejou contra ela (1Rs 20,1).

Ora, é extremamente improvável que o rei da Damasco tenha empreendido ações bélicas contra um aliado imediatamente após a batalha de Qarqar. Ou A-ha-ab-bu não é Acabe ou a batalha descrita em 1Rs 20 e 22 foi registrada de forma anacrônica (é o que pensa Herbert Donner em “História de Israel e dos povos vizinhos”, p. 305). O silêncio da Bíblia quanto a essa batalha e a incerteza quanto à correta identificação de Sir-‘i-la-a-a com Israel (Israel ou Jezreel?) também enfraquecem a teoria de que a inscrição contenha uma referência a Acabe.  A questão permanece aberta.

Apesar da coalizão entre os reis do corredor Siro-palestino a Assíria avançou até a Cicília, colocando Tiro e Sidon sob seu controle. Após um declínio de poder iniciado em 783 a.C., a Assíria retomou seu vigor com Teglat-Falasar III (745-727 a.C.) que marchou através da Síria e da Palestina chegando até Gaza, na costa do Mediterrâneo. Fracassada a tentativa de impedir o avanço assírio (ver: GuerraSiro-efraimita), Samaria sucumbiu diante das tropas de Salmanasar V (727-722). A população da capital de Israel foi deportada para várias partes do império com Sargão II (722-705), um usurpador assírio que dominou a Babilônia e estendeu suas campanhas até a fronteira com o Egito.



Jones F. Mendonça

sábado, 15 de março de 2014

GITÂ, DE RAUL SEIXAS E O BHAGAVAD-GÎTÂ: NEM DEUS E NEM DIABO

Há quem interprete a música Gitâ, de Raul Seixas, como sendo uma espécie de poema dito pelo próprio Satã. Outros, no entanto, pensam que Raul está se colocando como o próprio Deus. A composição seria uma espécie deboche dirigido aos cristãos.  Mania de perseguição...

Na verdade a canção recebeu inspiração do Bhagavad-Gîtâ (bhagavan - Deus; gita - canção), belíssimo poema hindu que faz parte da epopeia Mahâbhârata. O poema ganhou sua forma atual entre os séculos V e I a.C. e tem como pano de fundo uma batalha entre os membros do clã Kula. Esse dramático cenário é apesentado num diálogo entre Krishna (divindade hindu) e Arjuna (guerreiro perturbado por ter que lutar com seus parentes). O narrador é Sanjaya.

Tanto no Bhagavad-Gîtâ como na letra da música de Raul Seixas aparece a ideia de que todas as coisas existem ou surgem na divindade, mas o divino, não obstante, transcende todas as coisas (metafísica panenteísta).

Seguem alguns trechos do Bhagavad-Gîtâ (em azul) em paralelo com a música de Raul (em vermelho):

16. Eu sou a oblação, o sacrifício, a oferenda aos antepassados, a erva bendita, o hino sagrado, a manteiga purificada, o fogo e também a vítima consumida em holocausto.

Eu sou o seu sacrifício
A placa de contra-mão
O sangue no olhar do vampiro
E as juras de maldição

17. Sou pai, mãe, sustentador, avô deste Universo. Sou o objeto do conhecimento, o purificador, a sílaba OM e também o Rik, o Sâma e o Yajur.

Mas eu sou o amargo da língua
A mãe, o pai e o avô
O filho que ainda não veio
O início, o fim e o meio

19. Eu dou o calor, retenho e envio a chuva, sou a imortalidade e a morte, sou o ser e o não-ser, Arjuna.

Eu sou a vela que acende
Eu sou a luz que se apaga
Eu sou a beira do abismo
Eu sou o tudo e o nada

32.Sou princípio, meio e fim de todas as coisas criadas, Arjuna; entre as ciências sou a ciência do espírito supremo e sou o argumento Vâda entre os que discutem;

O início, o fim e o meio
Eu sou o início
O fim e o meio
Eu sou o início
O fim e o meio

33.Sou a vogal A entre as letras; o composto copulativo entre as palavras compostas. Sou o tempo infinito, o mestre ordenador, cujas faces estão em toda parte.

Das telhas eu sou o telhado
A pesca do pescador
A letra A tem meu nome
Dos sonhos eu sou o amor


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 14 de março de 2014

PHARISAEI HYPOCRITAE

O sujeito se considera o defensor da moral e dos bons costumes. Condena a corrupção, a lei que descriminaliza o aborto, a união civil entre pessoas do mesmo sexo, etc. Faz “denúncias” com muito entusiasmo e impecável retórica. Mas esse mesmo sujeito compartilha nas redes sociais, sem qualquer senso crítico, frases falsamente atribuídas aos que apoiam ideias que tanto se dispõe a combater. Difunde uma notícia falsa e é condenado pelos mesmos textos religiosos que emprega para desaprovar seus adversários. E ainda bate no peito orgulhando-se de sua pureza.



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 13 de março de 2014

SARCASMO RUSSO COMO RESPOSTA À HIPOCRISIA EUROAMERICANA

Alexander Nekrassov (via Al-Jazeera, 09/03/14), ex-conselheiro do Kremlin:
O Ocidente rotulou grupos armados e neonazistas [ucranianos] como "manifestantes pacíficos" e nacionalistas radicais como "patriotas" e “partidários da democracia”. Assim, o Presidente Putin se dirigiu aos jornalistas dizendo que não havia tropas russas na Crimeia.
Não, não estou defendendo Putim. Nas relações internacionais a hipocrisia e a mentira são comuns a todos os governos. Posiciono-me, todavia, contra a demonização de Putin, como fazem os comentaristas do Manhattan Connection, da revista Veja e de outros veículos de comunicação.


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 12 de março de 2014

REINO DE DEUS, REINO DOS HOMENS: BREVE HISTÓRIA DE UMA TIRANIA RELIGIOSA

Século VIII. O bispo de Roma (papa Zacarias, 741-752) alia-se a Pepino, o Breve, apoiando sua pretensão ao trono francês. Pepino é ungido rei em 754. Aproveitando-se da situação, a Igreja mostra a Pepino um documento por meio do qual o imperador Constantino (325) doa ao papa Silvestre (314-335) terras, honras e coloca a igreja de Roma acima das demais. Pepino acredita na autenticidade do documento (ou finge acreditar), a doação se efetiva e o papa ganha o status de soberano temporal. O papa já não se encontra mais sob o domínio político do império da Roma Oriental, mas dos francos e mais tarde do imperador alemão. Eis um trecho do documento (conhecido como Doação de Constantino):
Atribuímos-lhe o poder, a gloriosa dignidade, a força e honra do império, e ordenamos e decretamos que ela [a Igreja Romana] governe também sobre as quatro sés principais – Antioquia, Alexandria, Constantinopla e Jerusalém – e sobre todas as igrejas de Deus e, todo o mundo. E o pontífice que em cada tempo presidir sobre a santíssima Igreja Romana será o supremo e o principal de todos os sacerdotes do mundo inteiro e que conforme a sua decisão devem ser resolvidos todos os assuntos que se referem ao serviço de Deus e à confirmação da fé de todos os cristãos (BETTERSON, Documentos da igreja Cristã, p. 141-142).
No Natal de 800 o papa Leão III coroa Carlos Magno (filho de Pepino) na Igreja de São Pedro fazendo nascer o Sacro Império Romano. Mais tarde, com Gregório VII (1073-1085) e a publicação do Dictatus, o papa passa a ser infalível em pronunciamentos ex-cathedra e ganha o status de bispo universal. Com Inocêncio III (que nada tinha de inocente, 1160-1161) o papa assume o título de vigário de Cristo (representante de Deus na terra). No Solitae este mesmo papa chega a comparar o papado ao sol e o poder imperial à lua numa clara declaração de superioridade do papa sobre o imperador. A antiga igreja, outrora clandestina e perseguida, ganhava poderes inimagináveis. Então surgiram as cruzadas e a inquisição.

A falsidade do documento que serviu de impulso para o crescimento do poder da igreja foi demonstrada por Lourenço Valla em 1440. O erudito, especialista no idioma dos latinos, notou que o texto foi escrito no latim da renascença carolíngia e não no século IV.  O golpe dado por Valla enfraqueceu a igreja, já abalada pela imoralidade do clero, pelo surgimento de grupos dissidentes (como cátaros e valdenses), pelas denúncias de John Wyclif, Jan Hus, Erasmo e finalmente por Lutero.

O dia 31 de outubro de 1517 parecia anunciar o fim da tirania imposta pelos líderes da igreja. Então inventaram novos papas, não de carne o osso como os antigos, mas desta vez feitos de tinta e papel. Surgiam as confissões doutrinárias. E uma nova tirania se impôs.


Jones F. Mendonça

terça-feira, 11 de março de 2014

SOBRE TRADIÇÃO E FÉ

Para os protestantes a Bíblia é inerrante. Os hagiógrafos, dirigidos pelo Espírito divino, seriam também inerrantes durante (e somente durante) o processo de redação.

Para os católicos o papa, líder da igreja, é inerrante. Dirigido pelo Espírito transmitido por sucessão apostólica esse líder seria inerrante quando (e somente quando) se pronuncia ex-catedra.

A coisa poderia ser resumida assim: para os protestantes o escritor bíblico é inerrante. Para os católicos o papa, como vigário de Deus, também é inerrante, uma vez que está revestido pelo mesmo Espírito que atuou sobre os hagiógrafos. A fé, nos dois casos, está no que diz a tradição.

Sola fide! Mas sola fide na tradição...



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 6 de março de 2014

O RUGIDO DO URSO: SOBRE UMA GUERRA NÃO TÃO FRIA

Carlos Latuff
Hoje (06/03/14) o parlamento da Crimeia aprovou uma moção em que pede ao presidente Vladimir Putin a anexação da região à Rússia. Se o pedido for aceito pelo governo de Moscou caberá ao povo decidir se quer ou não aderir à federação russa.

A parte oeste da Ucrânia, favorável ao estreitamento das relações com a Europa e nutrida com elevado sentimento anti-russo, quer justamente o contrário. Os protestos em Kiev tiveram início após a decisão do presidente ucraniano (agora deposto) de rejeitar relações com a União Europeia em prol do apoio de Moscou.

Atualmente há um cabo de força atravessando a Ucrânia. De um lado os EUA e a Europa. Do outro a Rússia.

Parte do governo interino da Ucrânia (que é minoria) é formada por grupos ultranacionalistas, xenofóbicos e com inclinação neofascista. Moscou tenta superdimensionar esse lado radical dos “revoltosos de Kiev” a fim de justificar uma intervenção militar na região. A Rússia possui ligações históricas com a Crimeia, uma região autônoma e com constituição própria no sudeste da Ucrânia. Além disso, mantém uma estratégica base militar na região, que é banhada pelo Mar Negro. Por trás do discurso russo estariam ambições imperialistas.

Os EUA e a Europa, por outro lado, têm criticado o deslocamento de tropas russas para a Crimeia (majoritariamente pró-Rússia). Americanos e europeus acusam Putin de desrespeitar tratados internacionais e de interferir na soberania da Ucrânia. Mas o ocidente não pode negar que a deposição do presidente ucraniano foi ilegal, afinal ele foi legitimamente eleito.

O leitor poderá compreender melhor as divergências políticas, culturais e étnicas entre leste e oeste da Ucrânia lendo discursos vindos da Crimeia (pró-Rússia) e da Ucrânia (pró-ocidente):

Sergey Tsekov, vice-presidente do parlamento da Crimeia:
As autoridades centrais na Ucrânia estão provocando o povo da Crimeia [...] Eles pensam que nós vamos esquecer nossas raízes [russas], nossa língua, nossa história, nossos heróis. Somente pessoas estúpidas podem achar que nós vamosfazer isso. Infelizmente, pessoas estúpidas atualmente governam a Ucrânia.
Projeto do partido ucraniano Sbovona:
(precisamos) determinar o "Ucraniocentrismo" europeu em direção estratégica do Estado,segundo o qual a Ucrânia aspira se tornar não apenas centro geográfico, mas também o centro geopolítico da Europa. [...] Concluir um acordo bilateral comos EUA e a Grã-Bretanha para uma ajuda imediata à Ucrânia, de grande efetivo militar, em caso de agressão armada por parte da Rússia [...]. Assegurar a retirada de bases russas do território ucraniano.
Nas redes sociais (e até mesmo na grande mídia) há uma tendência em simplificar o conflito, ora defendendo a retórica americana e europeia, ora legitimando uma intervenção militar russa na região, mas a crise é bem mais complexa do que parece. Há quem acuse Washington de manter uma série de ONGs na Ucrânia com oobjetivo de enfraquecer a Rússia e estabelecer bases militares na região. Há quem acuse Putin de oportunismo e de caminhar na contramão num projeto retrógrado e desestabilizador.

É claro que em meio a toda essa “boa vontade” para com o povo ucraniano por parte das grandes potências há ambiciosos interesses geopolíticos. Na prática a diferença entre o imperialismo russo e o euro-americano é que no segundo o fel tem cobertura de coco.



Jones F. Mendonça

sábado, 1 de março de 2014

A JUSTIÇA SOU EU!

“L’Etat c’est moi” (o Estado sou eu”) frase atribuída a Luís XIV, em 13 de abril de 1655, dita enquanto entrava no parlamento em hábito de caça e com chicote na mão. O poder do Estado personificado na figura do rei pelo próprio rei.

Barbosa padece do mesmo mal. Vê a si próprio como justiça personificada.


Jones F. Mendonça