terça-feira, 30 de dezembro de 2014

JESUS EM CINCO FASES

Leio pacientemente “O Jesus histórico, um manual”, de Gerd Theissen (Loyola, 2004, 651 páginas). Passarei a postar a partir de hoje um pequeno resumo, sempre acrescentando informações tomadas de outras obras. Quando possível, um link conduzindo o leitor a um texto clássico será inserido. Como o professor de Heidelberg distingue cinco fases na pesquisa sobre a vida de Jesus, seguirei sua metodologia:

Primeira fase: Herman Samuel Reimarus (1694-1768) e Daniel Friedrich Strauss (1808-1874).

Reimarus foi o primeiro a fazer distinção entre o que Jesus disse e ensinou e a pregação dos seus seguidores expressa nos evangelhos e demais escritos neotestamentários: “Considero uma grande causa separar totalmente o que os apóstolos apresentam em seus escritos daquilo que Jesus de fato disse e ensinou em sua vida”. Para Reimarus, o centro da pregação de Jesus está na iminência do reino dos Céus (que é terreno) e no consequente chamado à penitência. Jesus seria então uma figura judaica profético-apocalíptica, e o cristianismo uma invenção dos apóstolos, que teriam roubado o corpo do Nazareno e inventado a ressurreição para dissimular o malogro do mestre (teoria da fraude objetiva).  Os escritos de Reimarus foram publicados após sua morte por iniciativa de Gotthold Ephaim Lessing (Fragmentos anônimos, 1774-79).

A polêmica teoria da fraude objetiva foi abandonada por Strauss, que interpretou a ressurreição como um processo inconsciente de imaginação mítica dos primeiros seguidores de Jesus, formado a partir de lendas messiânicas do Antigo Testamento (A vida de Jesus, 1835). A narrativa sobre os malfeitores crucificados ao lado de Jesus, por exemplo, teriam sido elaboradas sob influência de Is 53,12: “ele foi contado entre os pecadores”. Strauss também deve ser lembrado como o primeiro a reconhecer que o Evangelho de João foi estruturado a partir de premissas teológicas e é historicamente menos confiável que os sinóticos. Por outro defendeu uma teoria quase não mais aceita, que atribui a Mateus e Lucas uma data mais antiga que Marcos, que seria um enxerto de ambos (hipótese de Griessbach).

Próximo post aqui



Jones F. Mendonça

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

A VIDA DE JESUS, DE DAVID FRIEDRICH STRAUSS

Leio trechos (aqui e aqui) da obra “A vida de Jesus analisada criticamente” (1835), do exegeta e teólogo alemão David Friedrich Strauss. A principal tese de Strauss: "os evangelhos são a historização do mito Jesus". Strauss foi o primeiro (depois da publicação dos fragmentos de Reimarus) a distinguir o Jesus da fé do Jesus do histórico. A publicação do livro, com sua ênfase no esvaziamento do conteúdo sobrenatural dos evangelhos, foi um escândalo na Alemanha do século XIX. A perspectiva racionalista de Strauss foi adotada mais tarde por Ernest Renan, em seu famoso e não menos polêmico “A vida de Jesus”.  Ecos dos trabalhos de Strauss e Renan podem ser percebidos nos escritos de Nietzsche (1844-1900) e em diversos teólogos modernos que adotam o método histórico-crítico na análise das Escrituras. Abaixo alguns trechos selecionados por mim (fiz uma tradução livre a partir do inglês): 
QUANTO ÀS GENEALOGIAS DE MATEUS E LUCAS: “Jesus, por si mesmo ou por meio de seus discípulos, atuando sobre mentes fortemente dotadas de noções e expectativas judaicas, deixou entre seus seguidores uma convicção tão forte de sua messianidade que não hesitaram em lhe atribuir uma natureza profética de ascendência davídica [...] a fim de, por meio de uma árvore genealógica [...], justificar o seu reconhecimento como Messias”. 
QUANTO A SEU NASCIMENTO EM BELÉM: “Em nenhum outro lugar no Novo Testamento é mencionado o nascimento de Jesus em Belém. Em nenhuma parte a cidade aparece relacionada com seu suposto local de nascimento. Jesus sequer concede a Belém a honra de sua visita [...]. Em nenhuma parte ele apela à sua origem belemita como prova de sua messianidade, embora tivesse bons motivos para fazê-lo, considerando a repulsa que o epíteto “galileu” causava nas pessoas”. [...] a suposição de que Jesus nasceu em Belém é incompatível: [...] Jesus nasceu, não em Belém, mas, [...] com toda a probabilidade, em Nazaré”. 
QUANTO À SUA RELAÇÃO COM JOÃO BATISTA: “Assim, há boas chances de ser histórico: Jesus, atraído pela fama do Batista, colocou-se sob a tutela desse pregador, tendo permanecido algum tempo entre os seus seguidores, sendo iniciado em suas idéias sobre o reino messiânico que se aproximava”.   
QUANTO À SEU BATISMO NO JORDÃO: “a voz celestial e o Espírito Divino pairando sobre Jesus como uma pomba originaram-se a partir das idéias judaicas contemporâneas, tornando-se parte integrante da lenda cristã sobre as circunstâncias do batismo de Jesus. [...] os supostos elementos milagrosos do batismo de Jesus tem apenas valor mítico”.
Quanto a este último ponto, Strauss destaca a ligação feita pelos evangelistas entre a ruah de Javé agitando-se sobre as águas em Gn 1,2 e a bomba que sobrevoa as águas do dilúvio com um ramo de oliveira no bico em Gn 8,11. Estas duas passagens, relacionadas com uma interpretação judaica do Sl 52,2 (Davi é um ramo de oliveira, o Messias é a folha desse ramo), teria servido como pano de fundo para a criação do relato do batismo (pomba-Espírito/águas/renovação do mundo).


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

SOBRE DEUSES E HERÓIS

Thor é uma divindade do panteão nórdico associada à tempestade, ao trovão e à chuva. Nos países de língua inglesa e alemã deu nome ao quinto dia da semana, chamado de “dia de Thor” (Thursday/Donnerstag). O filho de Odin também faz sucesso no cinema, encarnado no corpo do galã Chris Hemsworth.

Ogum é uma divindade africana, senhor da guerra, dos metais, da agricultura e da tecnologia. Uma escola qualquer, numa cidade qualquer, resolveu distribuir revistas em quadrinhos tendo como herói a divindade africana. A ideia era difundir a cultura que herdamos desse continente. Os religiosos da cidade torceram o nariz. Disseram que o governo está incentivando o culto a Satanás.

Thor, deus nórdico, é herói. Ogum, deus africano, é diabo. Como assim?



Jones F. Mendonça

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

BOOGARINS - LUCIFERNANDIS

Na versão da Bíblia escrita em latim a palavra "lucifer" (=portador da luz) aparece apenas três vezes: 1) Em Is 14,12 designa o rei da Babilônia, que é comparado a uma estrela em queda 2) Em Jó 11,17, como símbolo para a luz que brilhará sobre Jó caso ele reconheça seus pecados e os confesse a Deus, 3) Em 2Pe 1,19, como alusão à plena revelação do Cristo que iluminará os corações dos que lhe forem fiéis. Diabo? Nem pensar. 

A banda goiana Boogarins - aparentemente em tom de provocação - deu à sua canção mais conhecida o título de Lucifernandis (Luci Fernandis ou lucifer nandis?). Trata-se de uma espécie de rock-baião-psicodélico. Não sei o que a palavra lucifer faz no título da música, mas que o som que os garotos fazem é pra lá de interessante, ah, isso é!

INQUISIÇÕES DE UM CRISTÃO REFORMADO

O Grande Caçador de Heresias construiu uma máquina do tempo. Foi à Palestina do primeiro século e condenou o comportamento de Jesus. O motivo: o Nazareno bebia vinho, comia com malfeitores e deixou de confrontar uma pecadora, que não só lavou seus pés com lágrimas como os secou com seus cabelos. O pecado: o escândalo. A pena: a fogueira.

O Grande Caçador de Heresias fez nova viagem. Foi à Alemanha do século XVI e reprovou o comportamento de Lutero. O motivo: o monge agostiniano convertia canções populares em hinos sacros, bebia cerveja enquanto traduzia a Bíblia para o alemão e acreditava no poder das bruxas. O pecado: o mundanismo. A pena: o caldeirão de azeite fervendo.

Tantas outras viagens fez o Grande Caçador de Heresias. Condenou, apontou o dedo, fez denúncias. Qualquer comportamento suspeito, por menor que pudesse parecer, ganhava a atenção de seus olhos sempre vigilantes. Certo dia - por um instante - tratou de cobiçar mulher que não era a sua. Lembrou-se de Mt 5,29 e, num movimento impetuoso, arrancou seus olhos com um marcador de Bíblias. Terminou a vida cego dos olhos, como sempre fora do coração.



Jones F. Mendonça

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

SENECA SAEPE NOSTER: ESTOICISMO, CASTIDADE E DEMÔNIOS

O livro deuterocanônico de Tobias na versão de Jerônimo (Vulgata Latina) possui uma passagem muito curiosa a respeito da primeira noite de núpcias de Tobias e Sara. Temendo o demônio Asmodeu, que sempre tira a vida dos pretendentes de Sara, Tobias põe o coração de um peixe sobre a brasa do defumador (seguindo o conselho do anjo Rafael, seu protetor) e ora ao Senhor pedindo-lhe misericórdia e salvação. Após três dias de oração Tobias declara: “vós sabeis, ó Senhor, que não é para satisfazer minha paixão que recebo minha prima como esposa, mas unicamente com o desejo de suscitar uma posteridade”. Só então a união é consumada. No final da história Tobias sobrevive à noite de núpcias derrotando o demônio Asmodeu. Essa declaração, que não aparece em códices gregos do século IV, foi inserida por Jerônimo (347-420 d.C.) com o propósito de fazer apologia à continência sexual.

Mas afinal, que medida tomada por Tobias foi capaz de livrá-lo das garras de Asmodeu: 1) O coração do peixe queimado sobre a brasa do defumador? 2) A oração piedosa? 3) a continência sexual que durou três dias? 

Jerônimo, que chegou a dizer (citando Xystus) que “aquele que é muito ardente com sua própria esposa é adúltero” (Contra Joviniano, I, 49), certamente escolheria a terceira opção. Um manual católico do século XIX, seguindo a interpretação dada por Jerônimo, diz claramente que o livramento na noite de núpcias deu-se “por causa da continência dos recém-casados” (Kirchen-Lexicon, 1899). Justino Mártir (100-165 d.C.), bem antes de Jerônimo, já aconselhava: “Nós, ou nos casamos desde o princípio para a única finalidade de gerar filhos, ou renunciamos ao matrimônio, permanecendo absolutamente castos” (Apologia I, 29).  

Mas é um erro pensar que os cristãos foram os pioneiros na valorização da abstinência sexual. Musonius Rufos (ou Musônio Rufo), professor de filosofia estoica de muitos legisladores romanos, declarava que “o ato sexual tem que ser um ato de procriação” (Sobre a indulgência sexual, Discurso XII). Nesse mesmo texto Musonius também condena a relação sexual entre homens, tida por ele como “coisa monstruosa e contrária à natureza” (o texto lembra Rm 1,26!). Sêneca, outro estoico, escrevendo a sua mãe Hélvia, assim se pronunciou em relação ao prazer sexual: “se refletires que o prazer sexual não foi dado ao homem para o gozo ou a fruição, mas para a propagação da espécie, então a luxúria não te tocou com seu sopro envenenado, aquele outro desejo também passará por ti sem te tocar” (Consolação a Hélvia).

Ao que parece, Paulo e os Pais da igreja, fortemente influenciados pelo ideal de pureza herdado dos filósofos gregos (particularmente dos estoicos), foram os grandes responsáveis pela visão negativa a respeito da atividade sexual no imaginário religioso medieval. Oração e abstinência – pensavam alguns dos primeiros líderes cristãos - são armas poderosas na luta contra os dardos inflamados do diabo. Mas o “remédio” tem efeitos colaterais. Efeitos, aliás, que ainda pipocam com muito vigor no seio da cristandade.



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

A FENDA DE JAVÉ



Zé Bobinho está tentando compreender o livro do Êxodo, mas está confuso. Em Ex 33,11 Moisés fala com Javé “face a face, como um homem fala com um amigo” (Nm 12,8 chega a dizer que Moisés contemplou a forma - a temunah - de Javé!). Mas em 33,20 o mesmo Javé diz (a Moisés?): “Não poderás ver a minha face, porquanto homem nenhum pode ver a minha face e viver”. Na sequência Javé é visto apenas “pelas costas” (em hebraico, ahor = parte de trás) depois de ter passado por cima de uma fenda na rocha.

Trata-se de um texto estranho, não é mesmo?

Para ouvir uma explicação para lá de escandalosa (mas com boa dose de coerência), assista ao debate entre Paulo Nogueira (UMESP) e Osvaldo Luiz Ribeiro (Faculdade Unida), em mesa da ABIB. O primeiro defende uma interpretação focada no leitor, aquele a quem é incumbida a tarefa de “ativar criativamente a memória potencial do texto”, resgatando suas “potencialidades dormentes” e preenchendo “as lacunas do não dito” (quem leu “Hermenêutica Bíblica”, de Croatto, conhece bem esse tipo de abordagem). O segundo, uma interpretação que olhe para o texto como janela para o passado, capaz de revelar o contexto em que ele nasceu e as intenções ocultas (ou perversamente ocultadas) pelas teias do tempo/pena do sacerdote.




Jones F. Mendonça