quarta-feira, 29 de julho de 2015

CONTOS ETIOLÓGICOS NA BÍBLIA: A INIMIZADE MORTÍFERA EM GN 3,15

Ontem fui interrogado por um aluno a respeito do texto de Gn 3,15, o qual transcrevo abaixo em versos, tal como corretamente dispõe a Bíblia de Jerusalém:
Porei hostilidade entre ti e a mulher,
entre tua linhagem e a linhagem dela.
Ela te esmagará a cabeça
e tu lhe ferirás o calcanhar”.
A pergunta do aluno: “ora, se a descendência da mulher é Cristo, quem é a descendência da serpente?”. Bem, a tradição cristã, desde os segundo século (Irineu, em Contra as Heresias III,23,7), interpreta a inimizade entre a mulher e a serpente como anúncio do “fruto do parto de Maria”. Em suma, Jesus seria a descendência da mulher. Mas e quanto à serpente? Faz algum sentido dizer que a linhagem da serpente é o diabo? E por acaso o diabo é descendente da serpente do Éden? 

Lutero, seguindo Irineu de perto, declarou que “Cristo é o descendente dessa mulher que esmagou a cabeça do diabo, isto é, o pecado” (Prefácio do Novo Testamento, de 1522). Para não cair no absurdo de dizer que o diabo pertence à linhagem da serpente, fez uma observação no final da frase: “isto é, o pecado”. Dito de outro modo: Jesus esmagou a “cabeça” do pecado, representado pela figura do diabo, a antiga serpente. É muito malabarismo exegético para meu gosto. 

Faz muito mais sentido pensar no texto como tendo caráter etiológico, visando explicar quatro fenômenos que davam asas à imaginação dos antigos: 
1. O porquê das serpentes rastejarem (3,14), 
2. A “inimizade” entre os humanos e as serpentes (3,15), 
3. O sofrimento das mulheres durante o parto (3,16), 
4. A submissão das mulheres aos maridos (3,16), 
5. A fadiga proveniente do trabalho no solo árido da Palestina (3,17-19).
Um conto etiológico, para quem não sabe, é uma pequena historieta, criada a partir da imaginação popular, com o intuito de explicar fenômenos que suscitam a curiosidade das pessoas, tais como as estranhas colunas de sal dispostas nas margens de um grande lago (a mulher de Ló, cf. Gn 19,26), um enigmático arco colorido que se estende nos céus (um sinal divino como pacto pela não repetição do dilúvio, cf. Gn 9,13), a diversidade de idiomas (a torre de Babel, cf. Gn 11,1-9), a extrema aridez de uma determinada região (fogo e enxofre sobre Sodoma e Gomorra, cf. Gn 19,24-25) ou as inusitadas pedras amontoadas num vale (o apedrejamento de Acã, cf. Js 7,26), etc.

Contos etiológicos são comuns em diversas culturas. Você pode ler uma pequena coleção deles na seguinte obra: CAMPBELL, Joseph. As máscaras de Deus, volume I, mitologia primitiva. São Paulo: Palas Athena, 2010. 




Jones F. Mendonça

sexta-feira, 24 de julho de 2015

COANDO MOSQUITOS, ENGOLINDO CAMELOS

Tolice adora compartilhar nas redes sociais suposta frase de Jean Wyllys dizendo que a Bíblia é uma piada e quem crê nela é palhaço. Cita, junto com a frase, texto de Ap 21,8, condenando os incrédulos e mentirosos ao lago ardente de fogo e enxofre. Mas Tolice não se dá conta de duas coisas: 1) Jean Willys nunca disse a tal frase, 2) Se o deputado não disse a frase, Tolice é mentirosa e tropeça no mesmo verso que usa para apontar o erro alheio.

Moral da história: quando nasceu, os pais de Tolice lhe deram o nome errado. Devia se chamar Hipocrisia.



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 23 de julho de 2015

ANTINOMIAS CALVINISTAS

A frase foi escrita por Calvino, reformador do século XVI: 
Eu concedo mais: os ladrões e os homicidas, e os demais malfeitores, são instrumentos da divina providência, dos quais o próprio Senhor se utiliza para executar os juízos que ele mesmo determinou. Nego, no entanto, que daí se deva permitir-lhes qualquer escusa por seus maus feitos (As Institutas, Livro I, Capítulo XVII, seção 5).
Há neste pequeno trecho da maior obra de Calvino (As Institutas) uma afirmação e uma negação. A afirmação: “até os malfeitores (como estupradores, por exemplo) agem segundo os juízos determinados por Deus”. A negação: “mesmo sendo instrumentos da divina providência, Deus não deve ser responsabilizado pelos perversos atos humanos”.

Trocando em miúdos: Embora Herodes tenha mandado matar criancinhas porque Deus assim quis, a culpa é apenas de Herodes e de seus capangas. Embora Adão tenha pecado porque Deus assim quis, a culpa pelo pecado é apenas de Adão. 

E tolos são os arminianos...


Jones F. Mendonça


quarta-feira, 22 de julho de 2015

ZÉ BOBINHO, PRAÇA DE 85

Bobinho tem um filho delinquente. Como pensa obtusamente que tudo se resolve na hierarquia e na disciplina, deu um jeito de colocar Delito, seu filho, no quartel. Conversou com o capitão Zureta e tudo certo. Cabelo cortado, barba feita e postura marcial, o filho de Bobinho finalmente encontrou seu lugar: o xadrez.


Jones F. Mendonça

segunda-feira, 20 de julho de 2015

AINDA SOBRE VACAS VERMELHAS PURIFICADORAS

Aos interessados no judaísmo, particularmente no projeto que busca produzir uma vaca vermelha como apresentada em Nm 19,10, capaz de purificar judeus que se contaminaram com um corpo morto e desencadear o apocalipse, vale ler o novo artigo publicado no Haaretz: “The Temple Mount red heifer saga: Engineering the apocalypse?”. O texto, assinado por Elon Gilad, sugere que as tais vacas vermelhas nunca existiram. Quer conhecer as razões apresentadas por Gilad? Abaixo um pequeno trecho: 
Os antigos separavam as cores de forma diferente da civilização moderna. O que hoje vemos como cores distintas, nossos antepassados viam como variações de uma mesma cor. O que chamamos de marrom, os antigos hebreus viam como um tipo de vermelho. Eles ficariam perplexos com nossa insistência em perceber o roxo, vermelho, laranja e marrom como sendo cores diferentes. Para eles todas eram tons variados de vermelho.
 Em suma, a tal vaca vermelha de Nm 19,10 pode ser na verdade uma vaca cuja cor varia entre o ruivo e o marrom. Todo o investimento na fertilização in vitro seria mera perda de tempo. Bem, este é apenas um efeito desastroso da leitura fundamentalista.

O texto, disponível apenas para assinantes e cadastrados, pode ser lido aqui: 


Jones F. Mendonça

domingo, 19 de julho de 2015

O JUDEU, A VACA VERMELHA E O DEFUNTO

De acordo com a lei judaica, todo o judeu que se aproxima de um corpo morto é ritualmente impuro até que seja banhado com água misturada com as cinzas de uma novilha vermelha. Mas a novilha vermelha, tal como exige a lei (Nm 19), não existe, e isso traz muitos problemas, afinal o Monte do Templo, local sagrado para os judeus, é cercado de cemitérios.

Para resolver a questão o Instituto do Templo iniciou uma campanha destinada a financiar um extenso processo de fertilização in vitro capaz de produzir os tais bovinos especiais (os embriões serão importados do Texas e de uma fazenda ao sul de Israel). Se tudo der certo os judeus mais ortodoxos poderão expandir seus passeios em Jerusalém sem medo de passar por perto de algum túmulo. E o mais importante: o Templo finalmente poderá ser reconstruído.

Mas o projeto esbarra num complicado problema. É que a tal novilha vermelha precisa ser abatida por um sacerdote (Cohen) ritualmente puro, condição que só pode ser alcançada pela morte de uma novilha vermelha. Entendeu? Mesmo que consigam produzir a novilha não haverá quem a abata.

Leia a história completa no Haaretz (Trata-se de uma matéria classificada como "premium", então será preciso fazer um cadastro).  Você também pode ler sobre o assunto no J Post




Jones F. Mendonça

quinta-feira, 16 de julho de 2015

TERRA DE ZARATUSTRA: PARA ALÉM DO BEM E DO MAL

Nos últimos anos diversas nações de cultura islâmica entraram em colapso: A Síria é um campo de tripas, cinzas e ferro retorcido. A Líbia, um deserto caótico. O Sudão e o Iêmen estão em convulsão. O Iraque, como país, praticamente não existe mais. Mas o Irã resiste apesar das duras sanções econômicas por conta de seu programa nuclear.  O povo iraniano é instruído, inteligente, criativo e orgulhoso de sua história.  No exterior identificam-se como persas com o peito estufado.

Apesar das dificuldades o Irã mantém um braço no Líbano (o Hezbollah), na Síria (é aliado de Assad), no Iraque (forças iranianas atuam no território contra o ISIS) e no Iêmen (os xiitas houthis). Perguntam-me se Israel e a os sauditas devem temer os iranianos. Minha resposta: claro que devem. Mas não me parece justo atacar o país ou manter as sanções apenas porque é possível que no futuro  revele-se hostil aos vizinhos.

O que Israel e a Arábia Saudita temem não é um ataque nuclear iraniano, caso consigam desenvolver um artefato atômico. O que temem é a perda da hegemonia do Oriente Médio.



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 9 de julho de 2015

CONSTANTINO E A ARTE TUMULAR CRISTÃ

Até o início do século IV a arte tumular cristã era caracterizada pela simplicidade. Mas a partir da conversão do imperador Constantino (312 d.C.) e a conseqüente adesão à nova fé por parte da elite da sociedade romana, as mudanças são visíveis. Um exemplo é este sarcófago de Junius Basus (datado para 359 d.C.), membro de uma família senatorial romana convertido ao cristianismo pouco antes de sua morte. Repare que Jesus, sem barba, aparece como legislador (Legis Traditio), representado como na arte imperial romana.  Abaixo as cenas representadas nos nichos: 

Linha superior: 1. Sacrifício de Isaac, 2. Prisão de Pedro , 3. Cristo com Pedro e Paulo (Traditio Legis ), 4 e 5. Dupla cena do julgamento de Jesus perante Pôncio Pilatos, que no último nicho está prestes a lavar as mãos.

Linha inferior: 1. Sofrimento de Jó, 2. Adão e Eva, 3. Entrada de Cristo em Jerusalém , 4. Daniel na cova dos leões e 5. Prisão de Paulo.

Clique para ampliar

quarta-feira, 8 de julho de 2015

PREPARANDO UM MANUSCRITO (CODEX)



Para inserir legendas em português, clique em "legendas" (parte inferior, à esquerda do ícone representado por uma engrenagem), depois em "detalhes" (o ícone é uma pequena engrenagem), escolha a opção "inglês" e finalmente selecione "traduzir" (a opção "português" aparecerá). 

domingo, 5 de julho de 2015

PONDÉ E A TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO II

Pondé critica os teólogos da libertação por usarem como princípio hermenêutico a filosofia de Karl Marx. Diz que há incompatibilidade entre as ideias do filósofo alemão e o cristianismo. Mas a apropriação de ideias filosóficas por teólogos da Igreja vem dos primeiros séculos. Com maestria e sofisticação sempre souberam ler seletivamente as obras nas quais se apoiaram.

Alguns teólogos abusaram tanto de Platão e do estoicismo que Tertuliano (séc. II-III) viu-se obrigado a protestar: “que relação há entre Atenas e Jerusalém”. Aristóteles, apesar de conceber o universo como sendo eterno (o que contraria a interpretação tradicional do Gênesis), foi usado como base para a teologia de Aquino em sua Suma Teológica (séc. XIII). Calvino (séc. XVI) tricotou pergaminhos platônicos, como demonstram suas Institutas.

O que Pondé precisa entender é que os teólogos da libertação apenas fazem o que todos sempre fizeram. Eles também aprenderam a ler, interpretar e assimilar seletivamente as obras de Marx como todos os seus antecessores fizeram com outros filósofos (quem leu “Teologia do político e suas mediações”, de Clodovis Boff, sabe disso). É coisa do ofício, não da esquerda religiosa. Mas Pondé tem obsessão pela esquerda. É coisa quase doentia.



Jones F. Mendonça

sábado, 4 de julho de 2015

PONDÉ E A TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO

Numa entrevista publicada em 2011 Luiz Felipe Pondé faz esta declaração dirigindo-se à TdL: “O santo é sempre alguém que, o tempo todo, reconhece o mal em si mesmo. [Mas] O clero da esquerda é movido por um sentimento de pureza. Considera sempre o outro como o porco capitalista, o burguês. Ele próprio não”. Mas o que dizer do discurso do “clero” da direita, como Pe Pedro Paulo, Malafaia, Feliciano, Eduardo Cunha e tantos outros. Em que momento reconhecem o mal em si mesmos? Não são eles também movidos por um sentimento de pureza? De suas bocas não sai um discurso que vê na esquerda - nos “porcos comunistas” - todo o mal do mundo? Então, meus caros, é sempre importante lembrar: o que chove lá, chove cá.



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 1 de julho de 2015

PAPAS DE PAPEL

Embora aos trancos e barrancos o cristianismo manteve certa coesão até que Lutero anunciou suas 95 teses contra as indulgências em outubro de 1517. O monge agostiniano imaginou que suas críticas seriam endossadas pelo Papa, mas acabou excomungado em janeiro de 1521 por Leão X. Mas a excomunhão era apenas o início de um processo traumático. Ao dizer que a Bíblia interpreta a si mesma (scriptura sui ipsius interpres) e que deve ser examinada livremente, o resultado é obvio: a interpretação também será livre.

Não adianta reclamar da imensa quantidade de igrejas surgidas todos os dias ao redor do planeta. Esse é o desdobramento evidente de algo que foi anunciado há quase 500 anos. É o preço da liberdade. As confissões doutrinárias protestantes – papas de papel - foram criadas com o propósito de pôr rédeas na interpretação, mas se mostraram inúteis, afinal o sola scriptura de Lutero sempre poderá ser usado por alguém disposto a questionar possíveis equívocos encontrados nessas confissões.

Só há um caminho para aqueles que se mostram indignados com a falta de unidade das igrejas evangélicas: retornem ao catolicismo. Lá todos declaram fidelidade ao Papa, visto como herdeiro das chaves de Pedro. Submetem-se ao Roma locuta causa finita (Roma falou, assunto encerrado) com alegria e bom grado. De um lado a “segurança” da infalibilidade papal. Do outro a “corda bamba” do livre exame. Na primeira você é apenas expectador. Na segunda é protagonista. A escolha é sua. 

Jones F. Mendonça