quarta-feira, 31 de agosto de 2016

PRECIPÍCIO

A pressa revogou o cuidado,
a ânsia aboliu o juízo,
o afã digeriu a razão.
Ímpeto sem freio,
alçapão do abismo.



Jones F. Mendonça

domingo, 21 de agosto de 2016

AUTOQUÍRIA EM TOM MENOR

À sombra de um jambeiro,
absorta em vil melodia,
repousou sob morena doçura,
embalada por pensamentos febris.

Na acidez da sinfonia,
assaltada pelas sombras do pensamento,
gemeu um artelho enlutado,
encarcerado no anel fulvo da agonia.

Em cicuta encharcada a língua,
deitada em rósea relva,
cerrou a pupila abatida,
para nunca jamais voltar a brilhar.



Jones Mendonça

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

JOGOS OLÍMPICOS E CIRCUNCISÃO

Em 2 Macabeus 4,18 há uma referência aos “jogos quinquenais”, celebrados em Tiro, cidade fenícia ao norte de Israel. Os jogos, disputados por atletas nus e dedicados a divindades estrangeiras, não agradou aos judeus mais piedosos. O escândalo foi registrado no primeiro livro de Macabeus:
Construíram, então, em Jerusalém, uma praça de esportes, segundo o costume das nações. [Os judeus, querendo ocultar suas circuncisões] restabeleceram seus prepúcios [puxando-os sobre a glade?] e renegaram a aliança sagrada [e então] Matatias inflamou-se de zelo e seus rins estremeceram.

O que vem depois dessa indignação? Uma guerra!


Jones F. Mendonça

terça-feira, 16 de agosto de 2016

BOBINHO E A ESSÊNCIA DAS COISAS

Atormentado por um sonho noturno Bobinho iniciou uma alucinante jornada em busca da essência das coisas. Queria encontrar a verdade profunda projetada para além dos sentidos.  Não se empolgava com o dossel estrelado, com a textura da derme nua, com a curva dos caracóis, com a flagrância dos manacás. “Tudo aparência”, dizia gritando pelos caminhos. Aos 40 anos enfiou-se numa caverna e pôs-se a meditar. Passava horas tentando ouvir o som das pedras. Perdia noites apalpando neblina e alisando fumaça. Investigava sem cessar a quadratura do círculo lunar. Queria sentir o gosto inebriante das galáxias distantes. Após 40 anos de solidão e ascese, Bobinho finalmente descobriu a essência e o sentido de sua existência: era um tonto!



Jones F. Mendonça

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

OS ENTULHOS DA ALMA

Sofrência não se contentava em acumular memórias amargas. Suas dores mais profundas eram cultivadas na mobília da casa. Na cômoda guardava em estojo estofado o anel de um noivado acabado. Na parede o diploma de uma profissão que jamais exerceu. No porão o dileto gato, agora empalhado. Na estante o retrato do pai que nunca a amou. Foi aconselhada a desintegrar tudo num rito solene. A celebrar vida nova em fogo festivo. Mas optou pela agonia perpétua, pela conservação da amargura.  Insistia em manter suas âncoras no passado sombrio. Mórbido desejo, aspiração doentia.  Ao preservar nos cômodos do lar suas relíquias tóxicas mais sagradas, perdeu-se nos destroços do passado. Ao continuar derramando lágrimas nas subterrâneas cisternas da alma, afogou-se em suas próprias recordações.




Jones F. Mendonça

terça-feira, 9 de agosto de 2016

ENTRE A RAZÃO E A PAIXÃO

Toda a análise precisa estar assentada em elementos racionais. Sempre. Nenhum médico, nenhum engenheiro, nenhum contador faz análise sob o impulso das paixões. Assim também deve ser no âmbito das relações humanas. O olho investigativo ganha potência na frieza da razão. Mas a análise, por sua vez, conduz ao diagnóstico, que exige uma solução. No fim de tudo será preciso decidir. E toda a decisão, embora leve em conta a emoção, os afetos, precisa necessariamente considerar a análise racional. O pranto e o desespero têm lugar nos desastres, nunca na prevenção dos desastres.



Jones F. Mendonça

BOBINHO E AS ABELHAS

Bobinho passava horas observando o voo daquela abelha. Mexia as asinhas: Ah, que lindo! Lambuzava-se no pólen: soltava um suspiro. Zumbia em ziguezague: seu olho apertava uma lágrima. Absorto em suas observações românticas do mundo animal, Bobinho rompeu o limite da sensatez e teve seu nariz golpeado pelo aguilhão peçonhento.

Diagnóstico: percepção romântica da realidade. Remédio: doses diárias de lucidez.



Jones F. Mendonça 

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

DIABRURAS MEDIEVAIS: SATÃ PROCESSA JESUS CRISTO

Página 23r
Num manuscrito intitulado “Peccatorum Consolatio, seu Processus Luciferi contra Jesum Christum” (1382), Lúcifer processa Jesus Cristo por ter transgredido a lei descendo ao Inferno. O julgamento é conduzido por ninguém menos que Salomão (o rei com um cetro). No primeiro julgamento Moisés (que aparece com chifres, à esquerda) é o conselheiro de Jesus Cristo. Belial aconselha o Diabo.

Mais adiante vão surgindo novos personagens, como Isaías e até Aristóteles. O trabalho, considerado herético, foi colocado no Index Librorum Prohibitorum, relação de livros condenados pela igreja católica.



Jones F. Mendonça

terça-feira, 2 de agosto de 2016

DECÊNCIA FEMININA NO CRISTIANISMO PRIMITIVO

Clemente de Alexandria (150-215), num tratado sobre as vestimentas das mulheres cristãs (Pedagogo, Livro II, 11), recomenda que se evitem apetrechos “supérfluos”, afinal, ele diz, “a Escritura declara que os supérfluos são do diabo”. Tingimento de cabelos, coloração dos olhos, da boca e da face, são alguns dos “supérfluos” citados pelo teólogo.

A prática do tingimento de roupas também recebe dura crítica: “o uso das cores não é benéfico, afinal não são úteis contra o frio”. O ideal, ele continua, “são as roupas brancas e simples”. As vestes, ele explica, servem unicamente para cobrir o corpo, jamais para serem admiradas. A base para tal ensinamento viria do profeta Daniel: “o Ancião sentou-se. Suas vestes eram brancas como a neve” (Dn 7,9). E finaliza: “as roupas que são como flores devem ser abandonadas”.

Por fim Clemente se debruça sobre o tamanho das saias das mulheres: “Não é conveniente ter o vestido acima dos joelhos, como, segundo dizem, fazem as moças de Esparta. Pois não é decoroso que a mulher descubra determinadas partes de seu corpo”. Tal modo de se vestir poderia despertar elogios embaraçosos, tais como “suas coxas são bonitas”. O rosto também precisa estar coberto com um véu, mas nunca de cor roxa, tonalidade que na opinião do teólogo “inflama os desejos”.



Jones F. Mendonça