sábado, 30 de dezembro de 2017

JACÓ E ISRAEL: DOIS NOMES, DUAS TRADIÇÕES

Quem lê com atenção o livro de Gênesis percebe que a mudança do nome de Jacó para Israel ocorre duas vezes no livro: 32,28-29 (Jacó luta com um anjo) e 35,9-10 (Jacó chega a Betel). Veja: 
1. Ele lhe perguntou: “Qual é o teu nome?” – “Jacó”, respondeu ele. Ele retomou: “Não te chamarás mais JACÓ, mas ISRAEL, porque foste forte contra Deus e contra os homens, e tu prevaleceste”.
2. Deus apareceu ainda a Jacó, vindo de Padã-Aram, e o abençoou. Deus lhe disse: “Teu nome é JACÓ, mas não te chamarás mais Jacó: teu nome será ISRAEL”. Tanto que é chamado de Israel.
Outro fato curioso é que mesmo após ter seu nome mudado (cap. 32 e 35), Jacó continua sendo chamado pelo antigo nome nos capítulos posteriores (história de José: 37-50). Um exemplo: 
“JACÓ rasgou suas vestes, cingiu os seus rins com um pano de saco e fez luto por seu filho durante muito tempo” (37,34).
Confuso? Então leia este artigo do Dr. Tzemah Yoreh, publicado no The Torah.



Jones F. Mendonça

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

SIMÃO: DE “MAGO ARREPENDIDO” A “PAI DE TODAS AS HERESIAS”


Embora o livro de Atos apresente Simão, o mago, arrependido após tentar comprar com dinheiro um dom divino (At 8,9ss.), a tradição popular ampliou a narrativa e converteu Simão numa espécie de “pai de todas as heresias” (até do gnosticismo!).

Nos “Atos de Pedro”, um apócrifo do século III, Simão é dotado do poder da levitação, mas é derrubado pelas orações piedosas de Pedro. De acordo com a tradição, as marcas dos joelhos de Pedro em oração ainda podem ser vistas numa laje de mármore na Igreja Francesca Romana, na capital italiana.

Na Catedral de São Lázaro, Autun, França, foi esculpida esta representação (séc. XII), mostrando Pedro (com as chaves da Igreja) orando diante da queda de Simão (foto acima). Outra representação da cena, bem bonita e colorida, pode ser vista numa pintura do século XVIII, exposta na igreja de San Paolo Maggiore, em Nápoles, Itália, obra do artista local Francesco Solimena.



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

CARVALHOS E TEREBINTOS

Foto:  Shmuel Browns

A imagem acima mostra um terebindo verdejante em contraste com o solo seco do deserto do Neguev, região semiárida que ocupa cerca de 60% da terra de Israel. O terebinto, ao lado do carvalho, era buscado como local para sacrifícios: 

Meu povo consulta o seu pedaço de madeira...
Eles se prostituem...
Debaixo do terebinto...
Pois a sua sombra é boa. (Os 4,12-13).

Muitas fotos de Israel em alta resolução, aqui.


Jones F. Mendonça

POSSESSÃO, INTESTINOS E ORIFÍCIOS


A imagem da esquerda retrata Catarina de Siena exorcizando uma mulher possuída numa tela de Girolamo Di Benvenuto (~1500). Repare que o capiroto sai pelo ouvido esquerdo, reflexo da crença medieval nos orifícios como canal de entrada e saída dos demônios.

A imagem da direita (Capela de Notre Dame des Fontaines, séc. XV) mostra a alma de Judas sendo removida do seu intestino. Era também no intestino que se instalavam os demônios. Por alguma razão curiosa, o demônio e a alma ocultavam sua morada no terreno mais desprezível do corpo.



Jones F. Mendonça

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

A ESTRELA DE BELÉM E O MAGO TUPINANBÁ


O relato da visita dos magos, inserido no início do primeiro evangelho (Mt 2), pretende destacar o caráter messiânico (e universalista) de Jesus. São nítidos os paralelos entre a postura dos “magos do Oriente” e a do “Mago Balaão” em Nm 23.

Balaão, como os magos de Mateus, reconhece o futuro de Israel como “reino exaltado” (Nm 24,7) do qual “procederá uma estrela” que “destruirá os filhos do orgulho” (Nm 24,17). O Herodes de Mateus, que não é bobo, entendeu o recado.

No início do século XVI, no embalo do êxito das conquistas no além-mar, a arte cristã portuguesa viu no relato da visita dos magos um oportuno instrumento de cristianização do imaginário indígena.

Nesta tela de Vasco Fernandes (1501-6), um dos magos (Baltazar), outrora representado como negro, aparece na figura de um ameríndio tupinambá!



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

SUBTERRÂNEOS TENEBROSOS


Para responder à pergunta: “para onde foram os justos do Antigo Testamento?”, os teólogos católicos desenvolveram a ideia do limbo, lugar provisório para onde teriam ido, por exemplo, os patriarcas .  

Nesta tela, de Andrea Mantegna (1470-75), Cristo é retratado resgatando alguns indivíduos do limbo. No canto esquerdo, próximo à abertura da caverna, aparecem Adão e Eva. A crença no limbo dos patriarcas (limbus patrum) é um dogma entre os católicos. O limbo infantil (limbus puerorum), por outro lado, vigorou por muito tempo como hipótese teológica até que foi definitivamente rejeitado em 2007 no pontificado de Bento XVI.

Pessoalmente considero as imagens retratando a ida de Cristo ao mundo subterrâneo como as mais poderosas sob a perspectiva psicológica. Um exemplar particularmente interessante e belo é “A descida ao inferno” (1568), produzida por Tintoretto. Neste trabalho, cuja cena é apresentada numa perspectiva enviesada, Cristo ilumina o Hades, antes completamente tomado pelas trevas.


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

O MAR MORTO NO HAARETZ

O Haaretz (jornal de Israel) publicou nova matéria sobre o Mar Morto com fotos aéreas de tirar o fôlego.



Leia mais aqui.



Jones F. Mendonça

EXORCISMO COM CALÇA EXÓTICA (OU ERÓTICA?)


O exorcismo de uma mulher numa gravura do início do século XVI (autoria desconhecida). Como nas representações medievais, os diabinhos saem pela boca. Uma tira parece tentar impedir que a cabeça da mulher se projete para trás. Ah, o sujeito que sustenta o corpo da mulher possuída veste uma calça muito da escandalosa...



Jones F. Mendonça

ANTIJUDAÍSMO, CRISTIANISMO E ISLÃ

1. A maior parte da comunidade judaica medieval - entre 800 e 1100 d.C. - vivia em território controlado pelos muçulmanos. Não eram vítimas regulares de violência religiosa ou exploração por parte da liderança islâmica. A narrativa que põe judeus e muçulmanos como inimigos históricos (“desde Ismael”) é mito, conversa fiada.

2. A população judaica em território cristão só começou a crescer a partir das conquistas cristãs dos territórios muçulmanos. Os judeus integrados aos territórios cristãos – habilidosos na atividade comercial e nos negócios – eram respeitados por uma razão muito simples: ajudavam a manter a economia aquecida.

3. De forma lenta e gradual um grupo de judeus foi se estabelecendo no norte da Europa (chamados de Askenazis). Embora apoiados pelas lideranças políticas cristãs, logo surgiram sentimentos antijudaicos. A razão: os cristãos, menos acostumados e viver num ambiente de diversidade religiosa, viam os judeus como um povo estranho.

4. A proibição da igreja aos empréstimos a juros feitos por cristãos a outros cristãos (considerado “pecado de usura”) abriu uma nova oportunidade aos judeus, acostumados a viver da atividade do comércio e dos negócios. O sucesso dos judeus nessa atividade favoreceu o desenvolvimento do ódio e do preconceito contra o povo do livro.

5. Na medida que a economia amadurecia, a contribuição judaica se tornava menos necessária e os governantes começaram a pesar os benefícios que poderiam obter com a expulsão dos judeus, medida que proporcionaria recursos econômicos através do confisco de propriedades judaicas, aprovação eclesiástica e aprovação popular.

6. Embora a crítica iluminista ao cristianismo medieval tenha se concentrado (com certo exagero) no maltrato dos judeus pelas Cruzadas e pela Inquisição, a violência e a perseguição aos judeus se deu por razões econômicas, alimentadas por razões religiosas (vistos como responsáveis pela crucificação de Cristo).

* Resumo em seis pontos de texto publicado no The Public Medievalist e escrito por Robert Chazan, professor de estudos hebraicos e judaicos na Universidade de Nova York. O texto faz parte da série: “Raça, racismo e Idade Média”.



Jones F. Mendonça

DOS DELÍRIOS NOTURNOS

O lamento de Jó, aqui, lembra a dor de um trabalhador assalariado que passa horas no transporte coletivo e é explorado por seus patrões: 
Jó 7,1 Não está o homem condenado a trabalhos forçados aqui na terra?
Não são seus dias os de um mercenário?
 Jó 7,2 Como o escravo suspira pela sombra,
como o mercenário espera o salário,
 Jó 7,3 assim tive por herança meses de decepção,
e couberam-me noites de pesar.
 Jó 7,4 Quando me deito, penso: “Quando virá o dia?”
Ao me levantar: “Quando chegará a noite?”
E pensamentos loucos invadem-me até ao crepúsculo.



Jones F. Mendonça

DAS ALMAS DESPEDAÇADAS


Há dois detalhes curiosos nesta tela representando o juízo final, de Hans Memling, de 1471.

Note que no canto superior esquerdo aparece um homem negro entre os ressuscitados (fenômeno raro na representação artística da época).

No centro da tela o corpo de um homem que acaba de ressuscitar é disputado entre um anjo e um demônio com asas de borboleta. Do jeito que puxa o cabelo do pobre infeliz, o capiroto parece bem decidido.



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

AS ORIGENS DO MONOTEÍSMO ISRAELITA

Em seu livro “The Origins of Biblical Monotheism: Israel's Polytheistic” (Oxford / New York: Oxford University Press, 2001), indisponível em português, Mark S. Smith procura demonstrar como o politeísmo foi uma característica da religião israelita até o fim da Idade do Ferro e como surgiu o monoteísmo nos séculos VII e VI.

De acordo com Mark Smith, declarações monoteístas claras somente podem ser notadas a partir do século VII, em textos como Dt 4,35.39; 1Sm 2,2; 2Sm 7,22; 2Rs 19,15.19 (= Is 37,16, 20); Jr 16,19-20 e a porção do século VI de Is 43,10-11, 44,6-88; 45,5-7; 14,18.21 e 46,9. A pergunta que ele se propõe a responder é: por que o século VII?

Smith inicia sua argumentação a partir da análise de textos religiosos uragíticos (religião cananeia), cujo politeísmo estava estruturado em quatro níveis: 1) El/Asherah (o deus principal e sua esposa); 2) Setenta filhos divinos (Baal, Astarte, Anate, etc.); 3) Kothar wa-Hasis (o ajudante principal); e 4) Os servos da casa divina (que a Bíblia trata como mensageiros).

De acordo com sua análise, inicialmente Javé teria sido visto pelos israelitas como um dos setenta filhos de El, cada qual cumprindo o papel de divindade patronal de setenta nações. Tal crença, destaca Smith, foi preservada nos manuscritos hebraicos mais antigos de Dt 32,8-9 (Qumran). Nesta passagem, El é apresentado como chefe da família divina, e cada membro dessa família (os bney Elyim) recebe uma nação sob sua tutela. Nessa partilha Israel é considerado “porção de Javé” (32,9). Outro exemplo citado pelo autor é o Sl 82.

Em algum momento do período monárquico tardio Javé passou a ser identificado com El e, por conseguinte, como marido de Asherah. Esta visão religiosa aparece, por exemplo, no Salmo 29,1-2, texto que convida os “filhos de Deus” (bney Elyim) a adorarem a Javé, o Rei Divino. Os outros deuses/mensageiros tornaram-se simples expressões do poder de Javé. Em outras palavras, o deus principal tornou-se a divindade única. Mas por que neste momento? 

Smith indica dois conjuntos de mudanças. O primeiro estaria ligado a uma série de transformações na estrutura social das famílias. A “família extensa” como principal unidade social deu lugar a um “sistema de linhagem menor”. A noção de responsabilidade também teria mudado de “coletiva” (Acã em Js 8) para “individual” (Dt 26,16; Jr 31, 29-30; Ez 18). Ele conclui: “O surgimento do indivíduo como uma unidade social ao lado da unidade familiar tradicional proporcionou inteligibilidade ao surgimento de um deus único e não de uma família divina”. 

O segundo grande conjunto de condições estaria relacionado ao surgimento de dois grandes impérios: o neoassírio e o neobabilônico. A partir da queda se Samaria em 722 a.C. e de Jerusalém em 586 a.C., a ideia de do “deus patrono” não poderia mais se sustentar, exceto se se admitisse que Javé não era um deus tão poderosos como vinha sendo anunciado. O monoteísmo resolveu esse problema argumentando que, apesar da fraqueza do povo, seu deus não era fraco, mas Senhor de tudo.

Os monoteístas de Israel agora raciocinavam que Javé estava no topo do poder divino, e, correspondentemente, os deuses da Mesopotâmia não eram nada. O exílio passou a ser visto como o plano de javé para punir e purificar a única nação que o Senhor havia escolhido. Por conseguinte, passou a ser difundida a ideia de um “ungido de Javé” não judeu (Ciro, o persa, cf. Is 44,28, 45,1), como tradicionalmente era pensado na literatura bíblica mais antiga (ver Sl 2). 

*Resumo feito a partir de artigo publicado em inglês no The Bible and Interpretation.



Jones F. Mendonça

terça-feira, 7 de novembro de 2017

PIEDADE E POLÍTICA

As 95 teses nascem da piedade, da indignação do monge rebelde. O termo "protestante" nasce da política, do protesto dos príncipes contra a Dieta de Espira, 12 anos após a publicação das teses. Sem a política Lutero teria terminado como Jan Hus: na fogueira.


Jones F. Mendonça


PAIXÃO, POLÍTICA E REFORMA

A dobradinha "piedade" (95 teses, 1517) e "política" (protesto dos príncipes, 1529) funcionou muito bem nas terras de Lutero. Na Inglaterra de Henrique VIII os termos foram outros.

Henrique VIII amava Ana Bolena, mas já era casado. Roma se negava a aprovar tal tropeço. Ao mesmo tempo Henrique estava de olho nas terras da Igreja. Alguém dirá: isso não vai acabar bem.

Eis como resolveu essa pendenga: 1) Criou sua própria igreja, a igreja Anglicana; 2) Essa igreja, liderada por ele mesmo, aprovou seu casamento com Ana; 3) De quebra confiscou as terras da Igreja no território sob seu domínio.

Malandro esse Henrique...



Jones F. Mendonça

PODERES CELESTES, PODERES TERRESTRES

Neste artigo, publicado no Jewish Link, Mitchel First discute a respeito do que ele chama de “o parágrafo perdido do livro de Samuel”.

Nos textos hebraicos mais recentes (massoréticos, século X e XI d.C.), o início de 1Sm 11 aparece de uma maneira; nos manuscritos mais antigos (Manuscritos do Mar Morto, séc. III a.C. a I d.C.) o texto aparece de outra forma.

Outra famosa diferença entre o texto massorético e os Manuscritos do Mar Morto (MMM) aparece em Dt 32,8. No texto massorético Javé fixa as fronteiras para os povos segundo “os filhos de Israel”. Nos MMM elas são fixadas segundo “os filhos de Elohim” (“filhos dos deuses”).

A crença na existência de poderes celestes associados a nações reaparece em Dn 10,13: 
Tenho de voltar para combater o Príncipe da Pérsia: quando eu tiver partido, deverá vir o Príncipe de Javã (=Grécia).


Jones F. Mendonça

terça-feira, 10 de outubro de 2017

ARTE E POLÍTICA

Por alguma razão a arte moderna tem sido associada ao comunismo. Curioso isso. Eis que lendo “O abuso da beleza” (Martins Fontes, 2015), do crítico de arte Arthur Danto, deparo-me por acaso a resposta que eu não esperava encontrar no livro:
Naqueles anos [da Guerra Fria] a arte moderna foi repudiada como algo subversivo, destrutivo e essencialmente antiamericano por personagens como o congressista George A. Dondero, de Michigan, que escreveu: "a arte moderna é comunista porque é distorcida e feia, porque não glorifica nosso belo país, nossa gente alegre e sorridente e nosso progresso material. [...] aqueles que a criam ou promovem são nossos inimigos" (p. 28).
Tudo aquilo que não é tradicional, pensava o congressista, é uma espécie de propaganda comunista disfarçada. Danto finaliza: “este é apenas um caso, como veremos, da politização da beleza”.



Jones F. Mendonça

REFORMA, GRAÇA E PROSPERIDADE

Muita gente evoca a teologia dos reformadores para criticar a teologia da prosperidade. Mas não foram justamente os calvinistas a defenderem a riqueza e a prosperidade econômica como sinal da graça divina? Na Europa o calvinismo foi o cavalo da burguesia.



Jones F. Mendonça

ARTE, PROPAGANDA E CONTRARREFORMA


Caravaggio gostava de retratar os santos como pessoas comuns, do povo: vestes rotas (ou até rasgadas), descalços, expressões faciais rudes, sem auréola, analfabetos (como o Mateus censurado, à esquerda). Repare que o anjo (afeminado) parece dizer “tá escrevendo errado, Mateus”. A tela da direita é o resultado de uma revisão feita após a exigência da igreja.

A influência teria vindo de seu protetor, o cardeal Frederico Barromeo (interesse pela “dimensão documental” das verdades cristãs), e dos místicos oratorianos (“função didática” da arte). As telas de Caravaggio devem ser vistas dentro do espírito de evangelização das classes populares empreendidos por setores da contrarreforma.

Leia mais sobre a função documentária da arte sacra do século XVII na seguinte obra:



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

A REFORMA PROTESTANTE EM NOVE PARÁGRAFOS CURTOS

1. No dia 31 de outubro de 1517, ou seja, há exatos 500 anos, um monge católico escreveu 95 teses - pequenas declarações - criticando uma série de abusos cometidos por sacerdotes mal-intencionados. No título das teses vinha a seguinte declaração: “Por amor à verdade e no empenho de elucidá-la, será discutido o seguinte...”.

2. Embora não haja certeza de que essas teses tenham sido pregadas na porta de uma igreja de Wittenberg (atual Alemanha), certo mesmo é que caíram na boca do povo. Mais que isso, o conteúdo do texto era tão bombástico que acabou chegando nas mãos do papa e de seus auxiliares. E eles não ficaram nem um pouco contentes com o que leram.

3. E olha que Lutero não pretendia criticar o Papa, mas apenas os chamados vendedores de indulgências, pessoas que vendiam títulos supostamente capazes de eliminar os pecados dos fiéis. Em sua tese 65 Lutero denunciou o uso das indulgências como “redes para pescar a riqueza dos homens” (Redes que aliás ainda “pescam riquezas” de fiéis nos dias de hoje!).

4. A prática da venda de indulgências era tão escandalosa que Lutero chegou a dizer, em sua tese 81, que estava ficando difícil, até para os homens doutos, defender a dignidade do papa contra calúnias ou perguntas, sem dúvida difíceis de responder, feitas pelos leigos. Lutero esperava uma reação enérgica do papa ao tomar conhecimento de suas denúncias.

5. Bem, mas não foi bem isso o que aconteceu. O monge rebelde foi chamado pelo Papa para dar explicações no ano seguinte. E como se manteve firme em suas posições, sofreu uma ameaça de excomunhão em 1520, num documento que condenava 41 de suas teses (bula Exsurge Domini). Lutero queimou publicamente a bula papal e não arredou o pé.

6. Em janeiro de 1521, diante de sua recusa em negar tudo aquilo que havia declarado, veio a excomunhão (bula Decet Romanum Pontificem). Lutero só não acabou preso porque recebeu apoio de diversas pessoas, inclusive de algumas muito poderosas, como o príncipe Frederico da Saxônia. Para sua sorte, Frederico tinha um bom plano.

7. Lutero foi levado em segredo a um castelo e mantido sob proteção por quase um ano. Em março de 1522 regressou à cidade onde havia divulgado as 95 teses que se tornaram tão famosas. Ao questionar (e enfraquecer) a autoridade do papa, Lutero acabou favorecendo a florescimento de novos grupos, com queixas e demandas diferentes.

8. Exigindo o fim da servidão – em nome da liberdade de Cristo - surgiram os reformistas radicais, como os anabatistas. Enfatizando a dimensão absoluta da soberana de Deus destacavam-se os calvinistas. Na Inglaterra, no desejo de se libertar da influência do papa em seus assuntos pessoais (ou seja, dinheiro, poder e mulher), o rei Henrique VIII criou a sua própria igreja, a igreja anglicana.

9. Seria um exagero dizer que a liberdade de culto e a tolerância religiosa são conquistas devidas à Reforma. Os reformadores não eram pessoas tolerantes como por vezes se diz por aí (Miquel de Serveto e Sebastian Castellio que o digam...). Mas o movimento deu impulso a uma série de transformações culturais, políticas, econômicas e sociais que de forma alguma podem ser negadas. Não fazia parte do projeto inicial de Lutero romper com a Igreja. Queria apenas reformá-la por dentro. Hoje a Reforma é vista como um marco na história da civilização ocidental. Lutero mirou um pato, acertou um avião.  



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

UMA FALA, QUATRO INTERPRETAÇÕES

Entre os judeus medievais desenvolveu-se uma crença que vê em cada passagem da Bíblia Hebraica (Antigo Testamento) quatro sentidos: 1. Sentido literal (peshat), 2. Sentido alusivo (remez), 3. Sentido interrogativo (drash) e 4. Sentido secreto (sod). O método, chamado de PARDES no século XIII, em boa parte voltado para uma leitura criativa, não foi único. 

João Cassiano (360-435), monge cristão da Cítia (atual Romênia), seguiu por um caminho bastante semelhante: 1. Sentido literal (histórico), 2. Sentido alegórico (alusivo), 3. Sentido tropológico (moral) e 4. Sentido anagógico (celestial). Lutero, no século XVI, rejeitou o método,  tratado por ele como “produto da ignorância” e “bobagem” (WA 2,509,14s).

No Alcorão, de acordo com um comentário místico atribuído ao Imam Ja'far al-Sadiq (702-765 d.C.), também se escondem quatro sentidos: 1. Expressão literal (ibāra); 2. Alusão (ishāra); 3. Sutilezas (laā'if) e 4. Realidade mais profunda (aqā'iq). A expressão literal seria para as pessoas comuns, a alusão para a elite, as sutilezas para os amigos de Deus, e a realidade mais profunda para os profetas.

Para saber mais:
1. O método (PARDES) judaico: WYLEN, Stephen M. The seventy faces of torah, 2001, p. 89. HAUSER, Alan J.; WATSON, Duane F. A History of Biblical Interpretation, 2003, Vol. 2: p.171
2. O método cristão de Cassiano: SCHOLZ, Vilson. Princípios de interpretação bíblica, 2006, p. 85.
3. O método islâmico: Da Spiritual Gems: The Mystical Qur’an Commentary ascribed to Ja’far al-Sadiq as contained in Sulami’s Haqa’iq al-Tafsir, Fons Vitae, 2011.



Jones F. Mendonça

terça-feira, 3 de outubro de 2017

DÉBORA, AS ABELHAS E AS ORAÇÕES PIEDOSAS

O nome próprio "Deborah", tomado da famosa personagem do livro bíblico de Juízes, significa “abelha” (Deborah; Jz 4-5). Curioso que a raiz hebraica da palavra Deborah (D-B-R) é a mesma de Dabar (palavra, discurso, fala). Há alguma razão para isso? Para Yona Sabar (Jewish Journal), a resposta é sim.

O pequeno inseto teria recebido este nome dada a relação entre seu zumbido e os sons da fala humana, particularmente àquele produzido por um grupo de judeus em oração. Tal relação de semelhança sonora explicaria a semelhança consonantal entre a palavra “fala” (D-B-R) e a palavra “abelha” (D-B-R-H). Convencido?

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Jones F. Mendonça

EM CASO DE PECADO, ABRACE O FRANGO

"Depois que o templo judaico foi destruído no ano 70 d.C., pelos romanos, o sacrifício de animais deixou de ser realizado pelos judeus". Esta afirmação, presente um muitos livros, exige uma pergunta: por quais judeus?

Um grupo de judeus ultra-ortodoxos pratica um antigo ritual que consiste em sacrificar frangos antes do Yom Kippur (será celebrado em 30 de setembro próximo). Eles acreditam que por meio do ritual é possível transferir os pecados cometidos pelo fiel ao frango. O ritual é conhecido como kapparot (plural de kapparah = expiação).

Num retiro de judeus liderados por uma sacerdotisa vegana de Connecticut o ritual sofreu uma pequena modificação. Ao invés de abaterem o frango, resolveram abraçá-lo carinhosamente. Que fofo, não?

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Jones F. Mendonça

O DADAÍSMO E O URINOL DE DUCHAMP

Vejo muita gente associando a abolição da beleza como objetivo último da arte aos movimentos de esquerda. Mas o grande golpe nas convenções tradicionais de arte veio do dadaísmo, movimento artístico do início do século XX que pretendia demolir toda a estrutura da representação racional. Está associado ao anarquismo, ao niilismo, ao libertarismo, mas não ao marxismo.

Uma obra muito famosa (e criticada) surgida no embalo desse movimento é o urinol de porcelana branca, idealizado por Marcel Duchamp, exposto numa mostra de artes em Nova York ("A fonte", foto). Embora você possa achar o dadaísmo e a obra de Duchamp uma grande bobagem, o movimento ajudou muitos artistas a se libertarem das restrições artísticas tradicionais e despertou neles a busca por novos horizontes.

Um dos frutos do dadaísmo é o surrealismo, movimento que deslocou o foco da beleza para as reações emocionais e os estímulos do inconsciente. Então embora não haja nada para ser apreciado no urinol de Duchamp (exceto para os homens com bexiga cheia), a mensagem por trás da obra teve uma dimensão revolucionária.



Jones F. Mendonça

O JUDAÍSMO E A SERPENTE DO ÉDEN

Certa vez alguém me perguntou a respeito de como os judeus do primeiro século interpretavam a figura da serpente em Gn 3. Expliquei que provavelmente não a viam como representação de Satanás, como fez a tradição cristã no segundo século. Mas fiquei devendo um exemplo.

Abaixo a interpretação alegórica feita por Filon de Alexandria (25 a.C. – 50 d.C.):
Deus, que criou todos os animais na terra, arranjou esta ordem muito admiravelmente, pois ele colocou a mente em primeiro lugar, isto é, homem [...]; depois o sentido externo, isto é, a mulher; e, seguindo a ordem regular, chegou ao terceiro, o prazer [...] representado sob a forma da serpente, pois assim como o movimento da serpente é cheio de muitas sinuosidades e variações, assim também é o movimento do prazer (Interpretação alegórica II, 74).
Bem, a razão para a escolha da mulher como alvo da serpente é explicada em outro texto (as mulheres não vão gostar!):
a mente da mulher é mais afeminada, de modo que através de sua suavidade facilmente é enganada e capturada por convicções falsas que imitam a verdade (Perguntas e respostas sobre Gênesis I, 34).



Jones F. Mendonça

O BANHO DAS ALMAS

Inspirado em Ap 1,5, Jean Bellegambe pintou esta tela (Banho místico das almas, 1525). Uma representação bastante bizarra para um observador moderno. Fora do contexto alguém certamente a classificaria como herética, blasfema e ofensiva. Ah, as donzelas assanhadinhas à esquerda da cruz são as virtudes teologais: a fé, a esperança e o amor.



segunda-feira, 4 de setembro de 2017

A ORIGEM DO ALFABETO E OS SELOS DE JERUSALÉM


O alfabeto foi inventado em algum momento no segundo milênio a.C. na Península do Sinai a partir de ideogramas egípcios. Alguém (ou um grupo de pessoas) percebeu que 22 consoantes funcionavam muito melhor que aquela infinidade de símbolos. Uma baita de uma ideia, não acha?

Os fenícios aperfeiçoaram esse alfabeto, que também foi usado pelos cananeus e hebreus (aliás, o hebraico é um dialeto cananeu). No selo da imagem, do século VII a.C., é possível ler: “Pertencente a Ezequias [filho] de Acaz, rei de Judá”. Cobri em vermelho a palavra “rei” (consoantes M-L-K) para que você possa visualizar melhor. Bem, mas este selo foi divulgado pela imprensa no final de 2015. O que há de novo?

Dois jornais de Israel – o Haaretz e o JPost – acabam de anunciar que a Autoridade de Antiguidades de Israel vai expor ao público (em 07/09/17) uma coleção de selos descobertos na cidade velha de Jerusalém em escavações realizadas nos últimos anos.

Você pode ler a notícia e as implicações da descoberta nos dois jornais de Israel ou tomar conhecimento pelo portal Gospel Mais, que certamente vai deturpar toda a história num sensacionalismo de dar medo.  Então, não perca tempo, escolha a primeira opção.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

O DEUTERONÔMIO E OS TRATADOS DE ESARHADDON

No âmbito acadêmico é amplamente aceita a ideia de que o livro do Deuteronômio, em uma forma mais primitiva, constitui uma apropriação subversiva da ideologia imperial neo-assíria a favor de um teocentrismo javista: um texto deliberadamente concebido para minar a autoridade do rei assírio colocando YHWH em seu lugar [sob Ezequias? Manassés? Josias?].

Tal suspeita tem suas raízes no reconhecimento praticamente consensual das semelhanças entre os elementos do Deuteronômio - especialmente os capítulos 13 e 28 - e os tratados vassalos e juramentos assírios de fidelidade, com especial incidência no Tratado de Sucessão de Esarhaddon, comumente denominado VTE.

O livro em destaque, disponível gratuitamente para download no site da SBL, pretende apresentar alguns pontos frágeis dessa teoria. As bases de suas críticas: 1. O sucesso da subversão exige que a audiência reconheça a relação entre o texto subversivo e a fonte que pretende subverter; 2. Nem Dt 13 nem Dt28 usam palavras ou frases de VTE com a precisão necessária para tornar esse relacionamento reconhecível. Boa leitura!


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

FUNDAMENTALISMOS

Mais perigoso é o fundamentalista inseguro, ressentido. Para mascarar suas dúvidas, seus medos, suas frustrações, ele agride, tenta de todos os modos impor ao outro suas crenças. Um moribundo com uma bomba guardada na alma.



Jones F. Mendonça

PEQUENO CONTO SUBLIMINAR

Chegaram da palestra com aquele papo de mensagem subliminar. Torci logo o nariz. Isso foi em 94 ou 95. Mas tinha em casa tudo o que precisava: uma velha vitrola e dois LPs que diziam ser “dos infernos”. Inverti os fios do motor da vitrola para que rodasse ao contrário, pus o LP no prato e a chiadeira logo começou. Pensei: caíram na conversa mole desses fundamentalistas paranoicos.

Mas eis que num trecho deu pra ouvir: “corre, corre, quero fumar!”. O silêncio foi geral. Eu, cético como sempre, não me dei por vencido e pedi pra colocar outra música, afinal tudo fora muito rápido. Mais chiadeira. Mas então deu pra perceber que havia entrado o refrão e todos ouvimos claramente: “a [...] nas trevas vive, acho que a virgem quer mudar de nome!”. Houve um silêncio apocalíptico. Todos com um olhão desse tamanho!

Bem, eu não sei quem colocou a frase nos trilhos do LP e nem a razão. Se foi por pacto, se foi por brincadeira, se foi por marketing. Mas que foi uma noite muito da mal dormida, ah, foi!


Jones F. Mendonça

RESSENTIMENTO E VIOLÊNCIA

O problema do fundamentalismo islâmico não é exatamente o Corão. Cristãos e judeus também souberam (e sabem) justificar a violência a partir de suas escrituras sagradas. Um lê: “ama o teu próximo”; o outro lê: “não vim trazer a paz, mas a espada”. Um é Luther King; o outro é Inquisição. E não importa aqui como devem ser lidos, mas como leem.

É preciso buscar na história as raízes do radicalismo islâmico que choca o mundo. Em três etapas: 1) O Império Turco Otomano sucumbe após a Primeira Grande Guerra; 2) O “Mundo muçulmano” desmorona e é explorado pelas grandes potências Ocidentais; 3) Indivíduos ressentidos, incapazes de reagir com dignidade, com inteligência, com decência, usam a religião como fundamento para sua guerra santa.

Enfim, no fundo o problema do fundamentalismo violento é o mesmo: o ressentimento. O verme que corrói a alma de membros da Ku Klux Klan é o mesmo que mastiga as vísceras de um membro do ISIS. São fracos fingindo que são fortes. Covardes sob o manto da valentia.



Jones F. Mendonça

terça-feira, 22 de agosto de 2017

SEIS OU NOVE

Tonta diz que é um seis. Louca grita que é um nove. Bobinho insiste na tese de que a verdade tem muitas faces, que ambas têm razão. Vero examina a placa, olha o seu verso, percebe uma pequena alça numa das extremidades mais largas e dispara: considerando a intenção de quem o projetou, é um seis. Moral da história: fora do contexto as verdades são líquidas. No contexto as verdades são sólidas. O resto é conversa fiada.



Jones F. Mendonça

sábado, 19 de agosto de 2017

DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Ora, se as liberdades individuais fossem absolutas, elas se aniquilariam pelo conflito. A todos os direitos devem ser impostos limites. Embora a Primeira Emenda americana defenda a livre expressão, a Suprema Corte desse país não vê esse direito como absoluto e permite restrições ao discurso verbal ou falado em algumas poucas áreas (obscenidade, difamação, fraude, etc.).

Alguns querem impor limites ao que um professor diz em sala de aula. Outros pedem exclusividade no uso de seus símbolos religiosos. Outros querem que os comerciais de TV não anunciem um produto cuja qualidade não condiz com a real. Outros ainda não querem feministas mostrando os seios em passeatas.

Estranho mesmo é quando essas mesmas pessoas, ao mesmo tempo em que defendem tais limites (algumas vezes ridículos), levantam a voz em defesa da livre expressão de racistas e xenófobos. É a vida humana sendo colocada abaixo de preceitos morais secundários.



Jones F. Mendonça

terça-feira, 15 de agosto de 2017

OS RABINOS, O FRANGO E O QUEIJO

Uma das mais conhecidas leis kosher (regra de alimentação judaica) proíbe o consumo de leite e carne numa mesma refeição. Tal restrição baseia-se em Dt 14,21 “Não cozerás um cabritinho no leite de sua mãe”.

Filon de Alexandria, judeu helenista do primeiro século, leu a restrição de forma literal e a compreendeu como tendo caráter ético: um animal jovem não deve ser cozido no leite de sua própria mãe porque tal atitude demostraria falta de misericórdia e decência (Virtudes 141-144). Bem, se isto é certo, por que a Torah não proíbe a ingestão de ovos e carne de galinha numa mesma refeição? A lógica não seria a mesma?

A tentativa de justificar racionalmente alguns preceitos da Torah ainda faz sucesso hoje, embora as explicações careçam de fundamento sólido. É o que fazem, por exemplo, com a carne de porco, cuja condenação, em Lv 11,7, seria explicada pelos (questionáveis) malefícios que a carne suína traz ao corpo. É preciso lembrar que além da carne de porco, também é proibida a ingestão da carne de lula, camarão, siri, cação, e outros animais aquáticos sem escama ou barbatana.

As escolas de Shammai e Hillel levantaram novas questões: será que é permitido ingerir derivados do leite com carne? Mais que isso: será que podem ser postos à mesa juntos durante a refeição? Em M. Hullim 8,1 o tema é discutido. A carne em questão é a de galinha:
A galinha pode subir à mesa com queijo, mas pode não ser comida. Estas são as palavras da casa de Shammai. Mas a Casa de Hillel diz: Não pode subir à mesa, nem ser comida...

Caso queira ler as discussões rabínicas a respeito a ingestão de leite e carne numa mesma refeição, leia este artigo publicado na The Torah.


Jones F. Mendonça

sábado, 12 de agosto de 2017

IBN EZRA E A AUTORIA MOSAICA DO PENTATEUCO

No século XII um judeu chamado Ibn Ezra fez uma série de comentários expondo sete textos do Pentateuco que se lidos com atenção indicam uma autoria não mosaica.  

Ibn Ezra expõe seus argumentos de maneira obscura (temia reações iradas dos mais conservadores), mas sua argumentação foi claramente explicada por outro judeu, R. Joseph ben Eliezer Bonfils, no final do século XIV.

Não conheço nenhum livro que transcreva os comentários de Ibz Ezra em sua integridade. Neste artigo, publicado no The Torah, é possível ler seu trabalho crítico em hebraico e inglês. Uma raridade. Leia aqui.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 11 de agosto de 2017

JUDAÍSMOS

Estamos no Antigo Israel do século VIII a.C. O rei quer governar. O sacerdote quer sacrifício. O sábio quer dar conselho. Profetas como Isaías, Oseias e Amós querem protestar contra as injustiças, sobretudo criticando reis, sacerdotes e profetas e sábios da corte (veja Is 28,7; Jr 8,9; 18,18). Não é uma relação fácil.

Quando Judá cai nas mãos dos babilônios – em 586 a.C. - a figura do rei é suprimida. O sacerdote ganha poder. Os sábios rejeitam o exílio como punição pelo pecado e as respostas prontas para os enigmas da vida. Os profetas são perseguidos, calados.

Novas potências subjugam Judá: persas, macedônios, ptolomeus, selêucidas. É sob o governo desses últimos - no século II a.C. - que nascem as seitas judaicas: saduceus, fariseus, essênios. Tentativas de adaptar suas antigas tradições a um mundo em constante transformação. Textos sapienciais, como a Sirácida e a Sabedoria, nem de longe lembram as críticas ácidas de Jó e Eclesiastes. É também no século II a.C. que nasce a literatura apocalíptica.

Judá na época de Jesus é uma região complexa: o poder político é latino, a escrita e a cultura é grega, as Escrituras Sagradas escritas em hebraico, o idioma falado o aramaico. Mais que isso: há seitas judaicas divergindo entre si. Influência do helenismo. Expectativa messiânica forte. Falta de esperança após uma sucessão de impérios dominando Judá.

No ano 70 d.C. o templo é destruído pelos romanos. Extintas as figuras do rei, do profeta e do sábio (convertido em escriba?), também chega ao fim o ofício sacerdotal. Como sacrificar sem o altar? Como cultuar sem templo? Nasce a figura o rabino, herdeiro de uma atividade muito apreciada pelos fariseus: o estudo da lei. Na sinagoga o comentário da lei substitui o culto sacrificial.



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

SAUL, SAMUEL, A SIRÁCIDA E BALBUCIADORA DE ENDOR

Em 1Sm 28 Saul consulta uma mulher, mestre balbuciadora (28,7), a fim de que lhe anuncie o futuro. Saul pede para que a mulher traga Samuel dos mortos e a mulher, surpresa(?), vê um elohim, com a aparência de velho, subindo da terra (vv. 13-14). Por fim Saul percebe que se trata de Samuel.

Difícil saber exatamente o que tem em mente o autor do texto. Javé teria feito Saul violar um de seus mandamentos a fim de lhe pregar uma peça? Seria um demônio, como pensavam alguns pais da igreja? Certo mesmo é que no segundo século a.C. a crença no retorno de Samuel do sheol para profetizar aos vivos era aceita. Pelo menos é o que testemunha a Sirácida: 
46,13 Samuel foi amado pelo seu Senhor;
46,20 Mesmo depois de morrer profetizou,
anunciou ao rei seu fim;
do seio da terra elevou a sua voz para profetizar,
para apagar a iniquidade do povo.

 Jones F. Mendonça

MAMON

Um romano, no século II, olha para o tamanho e o poder do império romano e diz: eis a prova de que nossa religião é superior. Um árabe, no século VIII, olha para o tamanho e poder do império islâmico e diz: eis a prova de que nossa religião é superior. Um norte americano, no início do século XXI, olha para as 800 bases militares americanas ao redor do mundo e a grana forte que circula em Wall Street e diz: eis a prova de que nossa religião é superior.

No fundo é apenas ambição, sede de poder e administração eficiente. A religião serve apenas como liga. Ainda interpretamos o mundo como os homens das cavernas...



Jones F. Mendonça

terça-feira, 8 de agosto de 2017

A RELIGIÃO, A FILOSOFIA, O DIREITO

Beatriz Bissio, em seu livro: “O mundo falava árabe” (Civilização brasileira, 2013, p. 2763, versão Kindle), expõe as razões que explicam a diferença – sob a perspectiva do direito - entre a Europa cristã e o império muçulmano, surgido no século VII:
O Império árabe-islâmico não tinha nenhum sistema legal coerente anterior [como o direito romano, adotado na Europa cristã], para valer-se dele e, além disso, para os muçulmanos [assim como para os judeus, que têm a sua halakhah] a submissão à vontade de Deus é o mandamento maior; é dele que emanam as leis [a sharia] que regulam a conduta dos fiéis e da sociedade.
No cristianismo a separação entre a religião e o direito foi facilitada pelo acolhimento das ferramentas herdadas do sistema legal do Império romano. Entre os romanos o ius (direito) era aquilo que a cidade permitia que se fizesse, sendo algo do domínio dos homens; o fas (religião) era o que a religião permitia, estando sob o domínio dos deuses. Assim, não se confundia o que era Direito com o que era religião.

Além do direito romano, a Europa cristã também acolheu a sabedoria greco-romana, que chegou a seu pleno florescimento no século XVI. No século XVIII, sob o impulso do iluminismo, pensadores franceses aprofundaram as principais ideias de Renascença, como a liberdade de expressão, a tolerância religiosa e o primado da razão. Sapera aude! (Ousa saber), como dizia Kant. Tais conquistas – é preciso enfatizar - não nascem da religião, mas da herança greco-romana.



Jones F. Mendonça

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

JUDAÍSMO E REENCARNAÇÃO

Esta frase, dita por Ovadia Yossef, proeminente rabino sefardita de Israel, revela o quanto é diversificado o judaísmo moderno sob o ponto de vista doutrinário:
As seis milhões de vítimas do Holocausto foram reencarnações das almas dos pecadores, pessoas que transgrediram e fizeram todo tipo de coisas que não deveriam ser feitas. Eles foram reencarnados para expiar” (Sermão semanal de sábado à noite em agosto de 2000).
A declaração – claro - não foi bem recebida pela grande maioria dos judeus. Não por afirmar uma doutrina estranha ao judaísmo (foi acolhida na era medieval), mas por sugerir que as vítimas do holocausto sofreram por pecados cometidos em vidas anteriores.

A fonte da citação, aqui



Jones F. Mendonça

terça-feira, 25 de julho de 2017

VALE DE HINOM, LIXÃO DE JERUSALÉM?


“A geena [forma grega para ge-hinom = vale de Hinom] é um lugar repugnante, em que se lançam sujeira e cadáveres, e nos quais os incêndios ardem perpetuamente para consumir a imundície e os ossos. Em consequência, por analogia, o julgamento dos ímpios é chamado de 'Geena'”.
Esta observação, feita no século XII d.C. pelo rabino David Kimhi, deu origem ao mito que sustenta ter existido no vale de Hinom uma espécie de depósito de lixo, usado por Jesus como metáfora para o castigo eterno destinado aos ímpios (Mt 10,28).

Mas a descrição é do século XII. Quem garante que no século primeiro o depósito já existia? Na verdade não há qualquer evidência literária ou arqueológica capaz de confirmar a existência do tal depósito de lixo.

O uso do vale de Hinom como metáfora para o castigo reservado aos ímpios vem dos profetas bíblicos: Jr 7,31-32; Is 30,33 e 66,24 (cf. 2Rs 23,10). O resto é conversa fiada (até que se prove o contrário).



Jones F. Mendonça